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2007-12-26
Em geral, os cariocas pensam que sabem tudo de favela. Não é para pouco: a convivência entre as casas erguidas nos morros sem controle e os edifícios no asfalto já existe há mais de um século. Este ano, o Morro da Providência – primeiro a ter as ocupações irregulares reconhecidas oficialmente – completa 110 anos. Para marcar a data, a prefeitura resolveu plantar novas favelas em sua encosta. Agora, literalmente. A favela da vez não é composta por tijolos ou tábuas de madeira. É vegetal e tem nome científico: Cnidosculus phyllacanthus.

“Favela é uma espécie da Caatinga baiana, um arbusto que pode atingir até cinco metros de altura e que possui espinhos que dificultam a exploração”, descreve a botânica Luci de Senna Valle, do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Qualquer semelhança nominal não é mera coincidência. A planta que é encontrada em abundância pelo semi-árido nordestino veio parar num morro do Rio no final do século XIX, emprestando sua denominação popular ao novo habitat.

“No Morro da Favela, na Bahia, havia grande quantidade de faveleira”, conta Luci. Ali era o local onde as tropas do Exército acampavam durante a Guerra de Canudos no final do século XIX. Ao fim da sangrenta campanha contra os seguidores de Antônio Conselheiro, milhares de soldados se mudaram para o Rio, pois o governo havia declarado que iria prover moradias na então capital federal. Com a tradicional demora das autoridades em cumprir promessas, os soldados começaram a ocupar o morro que fica atrás da estação ferroviária Central do Brasil, no centro da cidade.

“O terreno do Morro da Providência era seco e o solo árido, assim como no nordeste. Com certeza alguém levou a planta para o local”, explica Luci. Com a expansão das faveleiras pela encosta, os ex-combatentes fizeram uma alusão ao refúgio que tinham no sertão baiano e deram, então, o primeiro nome ao local: Morro da Favela. Somente alguns anos depois, quando os barracos passaram a tomar os lugares das favelas plantadas, o termo passou a ter o significado atual.

Hoje, já não se vê favelas no morro do Rio. Pelo menos as verdes. “Com a ocupação irregular, a espécie acabou sendo extinta de lá”, diz o coordenador de Projetos de Educação Ambiental da PUC-Rio, Roosevelt Fidelis de Souza. O professor conta que por esse motivo a universidade católica resolveu firmar uma parceria com a prefeitura, numa tentativa de reintroduzir a planta em meio às favelas atuais do Morro da Providência.

“Plantamos dez mudas dessa espécie no entorno do morro, e doamos quatro para as famílias mais antigas da comunidade fazerem o mesmo. Aproveitamos a história do nome e da ocupação, que é a primeira irregular em encostas, para fazer uma inauguração simbólica do plantio”, explica ele, acrescentando que as favelas devem se espalhar pela cidade: “Vamos levá-las para escolas da Rocinha, do Vidigal e para os morros mais simbólicos da cidade, como Mangueira e Estácio”.

Freio nas favelas

Enquanto a PUC se mostra motivada com o projeto, a prefeitura parece preferir ficar no simbolismo. Se depender do executivo municipal, a expansão das favelas não vai muito longe. “A favela não é característica da nossa mata. Só quisemos fazer uma homenagem aos nordestinos que começaram a povoar os morros do Rio”, declarou a Secretaria de Meio Ambiente, através da assessoria de imprensa.

Questionado sobre o plantio, o prefeito César Maia demonstrou simpatia pela empreitada: “Pelo papel fundacional que cumpriu, é uma obrigação da prefeitura conhecer a planta/árvore que deu origem ao nome (das favelas) e saber de sua história”. Mas César logo descambou o assunto para as outras favelas, das quais também parece se orgulhar. “Em 1932, a secretaria de urbanismo de Moscou, que nos visitou, usou a expressão ‘favela é solução’, porque viu os cortiços e as favelas e disse que era a salvação daquelas pessoas. São Paulo tem 600 mil pessoas vivendo em cortiços. O Rio não tem mil”.

O coordenador das Coleções Vivas do Jardim Botânico, Ricardo Reis, ratificou que a espécie não deve ser original daqui. “Pelas características, ela me parece não ser nativa do Rio. É uma espécie realmente restrita à Caatinga”, afirma. Mas explica que a faveleira pertence a uma família de plantas muito diversificada, o que pode abrir caminho para seu bom desenvolvimento em terras distantes do habitat natural. “Não tem como dizer com precisão sobre sua ocorrência”.

Apesar das dúvidas, especialistas acreditam que a planta de seiva baiana vá se adequar ao clima carioca. “O ambiente da Caatinga é seco, com temperaturas altas e com insolação a maior parte do tempo. Isso é o fundamental, e ela vai encontrar aqui”, assegura Roosevelt.

Prestígio nordestino

Se por aqui as faveleiras foram chutadas do morro, no nordeste elas encontram certo prestígio entre a população. Suas sementes são ricas em óleo comestível e a resistência à seca lhe dá grande importância econômica no sertão. “A semente dela é muito oleaginosa e há teses dizendo que a faveleira tem potencial alimentício. Há também estudos em andamento para se produzir faveleiras sem espinhos, com o objetivo de poder utilizar suas folhas e flores”, diz Luci, a pesquisadora do Museu Nacional.

“É uma espécie medicinal também. Os nordestinos a utilizam para fazer analgésico contra dor de dente, por exemplo. Além disso, os religiosos usam folhas e galhos para benzer as pessoas, tirar feridas, mau olhado”, conta Roosevelt. O professor da PUC ressalta que a planta não corre risco de extinção, mas é classificada como vulnerável. “Na região da Caatinga ela ainda é muito encontrada”.

A faveleira aporta novamente no Rio de Janeiro numa época em que suas colegas homônimas têm o nome cada dia mais desvalorizado. Hoje, é raro os próprios moradores dos morros se denominarem favelados. Para eles, a palavra é pejorativa. “Quando os moradores querem falar dos problemas, falam em favelas. Mas quando se referem a coisas boas, à convivência harmoniosa dentro desses locais, chamam de comunidade”, observa a antropóloga Alba Zaluar, autora do livro “Um século na favela”. Quem sabe a natureza não volte a valorizar a expressão por aqui?

(Bernardo Camara, O Eco, 26/12/2007)


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