Dom Luiz Flávio Cappio iniciou, há 17 dias, uma greve de fome pelo rio São Francisco, contra a transposição desse imenso rio, em favor das comunidades que vivem no seu curso, ribeirinhos, pescadores, quilombolas, indígenas, em favor daqueles que sofrem com a sede no nordeste, em favor da natureza do semi-árido. Dom Cappio exige um debate nacional sobre um projeto que só privilegia o hidronegócio, o agronegócio e as grandes empreiteiras e propõe como alternativa à transposição um projeto também do governo Lula, gestado na (ANA) Agência Nacional de Águas, um projeto que respeita e valoriza o meio ambiente e que levaria água a quem tem sede, não negócio.
O presidente Lula não realizou o debate prometido, cuja promessa encerrou a primeira greve de fome, e endureceu com Dom Cappio, afirmando que as obras com o Exército vão continuar, irreversíveis. Ou seja, para Lula, a morte de Dom Cappio é uma alternativa possível e aceitável.
No entanto, ao redor do gesto radical do bispo, está se formando uma corrente de solidariedade, de apoios, de alianças, de identificação ética, política, social, ideológica, cujos contornos são facilmente identificáveis: trata-se dos movimentos sociais, políticos, pelos direitos humanos, pastorais sociais, personalidades da Igreja Católica, da política, da cultura, que constituíram, desde os anos 80, Lula como liderança de massa em nosso país. Este universo social, político e cultural, de pessoas e movimentos sociais tiveram, ao longo de mais de duas décadas, uma relação com Lula que foi como a da vela com a sua chama: uma nutrindo-se da outra.
A luta e a perspectiva de vida ou de morte de Dom Cappio coloca esta antiga história numa encruzilhada: se Dom Cappio sobreviver, haverá continuidade, mesmo que mais conflitiva, devido ao lugar institucional há cinco anos ocupado por Lula; se Dom Cappio vier a falecer, será o final dessa história.
Não será Dom Cappio apenas que morrerá, mas morrerá a referência política de Lula e do Partido dos Trabalhadores na história dos movimentos sociais do Brasil.
Vivemos, tempos atrás, o final da ditadura, sua desconstituição simbólica a partir dos movimentos sociais e sindicais, onde despontou o próprio sindicalista Lula como protagonista central; vivemos o final da Nova República como alternativa civil, com a contestação popular; vivemos a derrocada do aventureiro Collor e seu grupo com os movimentos sociais na rua, vestidos de preto; vivemos o fim do ciclo neoliberal tucano de Fernando Henrique Cardoso, com o repúdio nas urnas. Todos terminaram percebendo "um desprezo singular nos olhos do homem simples", como o protagonista central da peça Roda Viva, de Chico Buarque de Holanda.
O percurso histórico de Lula lembra o percurso do próprio rio São Francisco: muitas fontes limpas no nascedouro, depois um trajeto acidentado, muitos entulhos, assoreamento e alianças contraditórias pelo caminho; a sedução do grande capital no seu curso final; o definhamento, como rio e como história política, sem chegar ao oceano da memória afetiva do povo brasileiro. A história da liderança popular de Lula será a história de um fracasso.
A morte física de Dom Cappio sinalizará para a morte política de Lula.
Brasília, 14 de dezembro de 2007.
(Por Paulo Maldos *,
Adital, 17/12/2007)
* Assessor político do Conselho Indigenista Missionario (CIMI)