A usina no rio Madeira representa a retomada das grandes obras de infra-estrutura no país. Mas o caminho até que a primeira turbina gere energia é cheio de riscos e obstáculosCélebre pela fúria de suas águas barrentas, capazes de carregar árvores de até 30 metros de altura, o rio Madeira, em Rondônia, desde 2001 tem sido alvo do apetite da construtora Odebrecht. Foi naquela época, quando o país amargava o racionamento de energia, que a Odebrecht, em parceria com a estatal Furnas, começou a despachar missões técnicas para pesquisar o potencial hidrelétrico do Madeira. As duas empresas investiram 150 milhões de reais no estudo de viabilidade técnica e ambiental do rio. O investimento começou a ser recompensado no dia 10 de dezembro de 2007, quando o consórcio de investidores Madeira Energia, liderado por Furnas e Odebrecht, precisou de apenas 7 minutos para derrotar seus dois concorrentes -- os consórcios encabeçados pela Camargo Corrêa e pela francesa Suez Energia -- no leilão de concessão da hidrelétrica de Santo Antônio. Junto com a futura usina de Jirau, Santo Antônio formará o complexo hidrelétrico do Madeira, com potencial de geração de energia equivalente à metade de Itaipu, a maior em operação no mundo. Para levar Santo Antônio, um negócio de 9,5 bilhões de reais, o Madeira Energia ofereceu um agressivo deságio de 35% sobre o teto de 122 reais por megawatt-hora fixado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), órgão regulador do setor elétrico. "Vencemos porque só alguns peixes do Madeira conhecem o rio tanto quanto nós", diz Irineu Meireles, diretor da Odebrecht e líder do Madeira Energia.
De acordo com Meireles, para chegar ao lance vencedor de 78,90 reais por megawatt-hora, o consórcio incorporou nas semanas que antecederam o leilão uma espécie de "espírito Wal-Mart" voluntário: o preço de cada item do projeto -- do cimento às turbinas -- foi espremido até o limite. Mas o mercado interpretou de outra maneira o preço surpreendentemente baixo oferecido pelo Madeira Energia. No dia do leilão, os papéis da distribuidora Cemig, dona de participação de 10% no consórcio vencedor, fecharam em baixa de 3% na bolsa de valores. As ações da Eletrobrás, controladora de Furnas, caíram 5%. Para analistas ouvidos por EXAME, o mercado denotou temor de que o governo teria feito uma pressão indevida para baixar o preço da energia no longo prazo. "Podemos estar diante de um caso de populismo tarifário", diz Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura.
Percurso acidentadoOs principais desafios que aguardam o consórcio vencedor do leilão de Santo Antônio
2008
Janeiro: Prazo final para a entrega à Aneel da documentação do consórcio vencedor do leilão da usina de Santo Antônio
Maio: Assinatura do contrato de concessão e início no Ibama do processo de licença de instalação — isto é, a permissão de construção — da usina. Nesse período, devem se intensificar os protestos de ambientalistas, lideranças indígenas e até procuradores públicos
Julho: Data estimada para o leilão da linha de transmissão que levará energia até o centro-sul, principal região consumidora do país. O linhão, por atravessar áreas de floresta e de cerrado ao longo de seus 2 450 quilômetros, deverá ser outro foco de protestos
Agosto: A logística de abastecimento do material para a obra é um dos grandes desafios dos construtores.Nesta data está prevista a inauguração de uma fábrica de cimento da Votorantim em Porto Velho, o que facilitará o suprimento do insumo
Setembro: Caso o Ibama conceda a licença de instalação, as obras de Santo Antônio serão iniciadas. O canteiro começará com o trabalho de construção do lago da usina.Se houver atraso, o início da empreitada poderá cair na época das chuvas, complicando a construção de estradas de acesso
2009
Julho: No auge da construção, a obra de Santo Antônio empregará 10 000 trabalhadores, dos quais 1 000 deverão ser engenheiros e técnicos de nível médio — mão-de-obra especializada que hoje já está em falta nas principais cidades do país
2010
Fevereiro: Início do transporte e da instalação das turbinas da hidrelétrica. Cada uma pesa 3 000 toneladas. Elas deverão chegar em barcaças pelos rios da Amazônia. Nesta fase, o consórcio construtor já terá desembolsado mais da metade do investimento
2012
Dezembro: Se tudo der certo, as duas primeiras turbinas de Santo Antônio entrarão em operação. Mais quatro anos serão necessários até que o conjunto de 44 geradores esteja instalado para completar a capacidade prevista de 3 150 megawatts
Independentemente das primeiras reações ao resultado do leilão, o fato é que, por sua escala, pela localização e até mesmo pelo simbolismo da retomada dos grandes projetos de infra-estrutura nacional, a construção de Santo Antônio só encontra paralelo nas duas maiores hidrelétricas do país -- Itaipu e Tucuruí --, ambas feitas pela ditadura militar e inauguradas no começo dos anos 80. "A concessão de Santo Antônio é um marco na história do país", diz Maurício Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética, órgão do governo responsável pelo planejamento do setor. "A usina representa a aposta conjunta dos setores público e privado num projeto em plena Amazônia, a região que abriga dois terços dos recursos hídricos brasileiros a ser explorados." Trocando em miúdos, tanto o governo como o Madeira Energia sabem que a construção de Santo Antônio não pode dar errado -- um eventual fracasso significará elevação do preço da energia e deterioração da imagem do país, para não falar no prejuízo do consórcio vencedor.
Do ponto de vista da engenharia, a receita para fazer uma hidrelétrica não mudou muito nas últimas décadas. Contudo, o curso da história alterou radicalmente as exigências ambientais que envolvem uma obra desse porte. Em 1982, enquanto o lago de Itaipu engolia a cachoeira de Sete Quedas, o país era governado pelo general João Figueiredo. A maior iniciativa ecológica do projeto foi a operação Mymba Kuera, termo tupi-guarani para "pega bicho", que consistia no esforço desesperado de funcionários da usina percorrendo em lanchas a área inundada para salvar animais. Vinte e cinco anos depois, as restrições legais em favor do meio ambiente e as pressões dos movimentos ecológicos tornaram a construção de uma nova hidrelétrica alvo de um escrutínio público inédito. "Temos consciência de que estaremos na vitrine do mundo, e faremos tudo para causar o menor impacto possível", diz Meireles.
O maior desafio do Madeira Energia será cumprir o cronograma atendendo também às exigências feitas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), responsável pelo licenciamento ambiental. Depois de meses de atraso, pressionado pela ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, no último mês de julho o Ibama concedeu a licença prévia para a construção das usinas do Madeira, impondo 33 condições, entre as quais a proteção dos bagres e o monitoramento da vazão dos sedimentos do rio. Mas, até que Santo Antônio seja inaugurada -- idealmente no final de 2012 --, o Ibama deverá emitir mais três licenças: a de instalação, que libera a construção da usina; a de operação, que permite que ela comece a funcionar; e a da linha de transmissão que transportará a energia da região Amazônica até Araraquara, no interior de São Paulo, o maior mercado consumidor de energia do país. Dessas licenças, a mais delicada deverá ser a de instalação. O Ibama terá apenas quatro meses, de maio a setembro de 2008, para produzi-la. Se o prazo não for cumprido, as etapas iniciais da obra, que incluem a construção de estradas de acesso e de acampamentos para os até 10 000 operários e engenheiros, além da preparação inicial das margens do rio, serão prejudicadas, porque devem ser feitas antes da estação das chuvas na Amazônia, que vai de novembro a abril. Qualquer atraso causará um efeito dominó, retardando todas as fases posteriores da construção.
Mesmo que o Ibama trabalhe em dia, os grupos ecológicos e indígenas prometem causar uma bela dor-de-cabeça ao Madeira Energia. Antes mesmo de o leilão acontecer, o grupo ecológico Amigos da Terra já entrava com uma ação pública na Justiça tentando, sem sucesso, impedir a licitação. Na hora marcada do leilão, um grupo de militantes tentou bloquear a entrada dos representantes dos consórcios na sede da Aneel, sendo dispersados pela polícia. Tais incidentes dão uma amostra da oposição que o projeto deve enfrentar. De olho no risco que uma guerra de liminares pode representar, a Advocacia-Geral da União mantém um batalhão de advogados a postos para desatar eventuais nós judiciais. "Estaremos atentos a qualquer questão que afete o andamento da obra", diz o procurador-geral da União, Luís Henrique dos Anjos.
Entre as maiores
Como ficará o ranking das hidrelétricas brasileiras com as futuras usinas do Madeira(1) (por potência instalada):
1º Itaipu (rio Paraná): 14 000 MW
2º Tucuruí (rio Tocantins): 8 370MW
3º Santo Antônio e Jirau (rio Madeira): 6 450 MW
4º Paulo Afonso (rio São Francisco): 3 984 MW
5º lha Solteira (rio Paraná): 3 444MW
Afora as questões ambientais, a própria construção da usina representa um desafio à parte. Contam a favor a proximidade da cidade de Porto Velho -- distante 7 quilômetros do canteiro de obras -- e os próprios rios amazônicos, que auxiliam no transporte de materiais. Ainda assim, as cifras relativas à construção impressionam. A barragem de Santo Antônio deverá consumir 170 000 toneladas de estrutura metálica, além de 3,7 milhões de metros cúbicos de concreto, o suficiente para construir 60 estádios iguais ao Maracanã. Enquanto o concreto deverá ser produzido na região e comprado a granel, a estrutura metálica será transportada pelas hidrovias amazônicas, assim como as 44 turbinas, cada uma com 33 000 toneladas, que operam submersas, maximizando o aproveitamento da força do rio para gerar energia. Outro desafio crucial deverá ser a construção da linha de transmissão PortoVelhoAraraquara. Pelos planos do governo, sua concessão, orçada em 1,8 bilhão de reais, será leiloada em meados do ano que vem. Aqui, o risco tem a ver com a eficiência de um sistema de logística a ser distribuído ao longo de 2 450 quilômetros, cruzando os estados de Rondônia, Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e São Paulo. A fim de diminuir o desmatamento, as torres de transmissão, que vão atravessar áreas de proteção ambiental, terão pelo menos 40 metros de altura. Tais linhas deverão ser protegidas contra invasões. Então, se tudo der certo, as duas primeiras turbinas de Santo Antônio começarão a gerar energia em dezembro de 2012, mais de uma década depois de a primeira excursão da Odebrecht fincar os pés no Madeira. A maratona apenas começou.
(Por Angela Pimenta,
Portal Exame, 14/12/2007)