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transposição do são francisco
2007-12-14
São Francisco nos ajude a ser solidários com todos os pobres do nordeste e as populações ribeirinhas, e ao mesmo tempo nos livre dos fundamentalismos religiosos ou ecológicos.

Para quem gosta de análises lineares e simplistas, onde não entram as contradições da realidade, é difícil ouvir os dois lados de um problema, encerrando-se cada um em seu absoluto. O problema da transposição do São Francisco tem elementos humanos, ecológicos e técnicos, às vezes de difícil harmonização. Entretanto, uma análise madura não pode escamotear a multiplicidade de ângulos e de tensões. Ficar só com os primeiros elementos é encastelar-se numa ética sem raízes materiais; optando só pelo último é encerrar-se num tecnicismo frio. As populações ribeirinhas das barragens do Uruguai ou de Tucuruí, ainda ontem, sofreram violências, as últimas vivendo o envenenamento pelo apodrecimento das madeiras submersas. Ambas tinham razão ao defender seus direitos. Mas ao mesmo tempo, as barragens e as usinas são necessárias se queremos energia para transformações na infra-estrutura produtiva. Em meu tempo como chefe na FAO, pude sentir como técnicos da Codevasp se interessavam, sobretudo, pela arquitetura interna dos projetos como o de Sobradinho, com pouca sensibilidade diante dos problemas humanos das populações atingidas. Mas estas, por sua vez, nas mãos de assessores ideológicos radicais, não recebiam as informações necessárias para uma tomada de posição mais abrangente e realista.

Fernando Lugo, ex-bispo e possível novo presidente do Paraguai, tem razão de questionar a maneira como seu país foi tratado, na construção de Itaipu, pelos governos militares brasileiros, mas não pode esquecer também o papel nefasto dos políticos corruptos paraguaios que se locupletaram amplamente. Por outro lado, é necessário constatar tudo o que Itaipu representa de avanço para o país. Há geralmente dois lados na realidade.

Tenho amigos técnicos que estão convencidos de que a transposição é viável, necessária e positiva, se tomadas algumas precauções. Outros se opõem também com argumentos técnicos. Há aí um debate sério que vem sendo realizado, com a presença de Dilma Rousseff, Marina Silva e outros membros do governo. Mas evitemos escapar pela tangente do tema: opor transposição ou cisternas, medidas que podem ser ambas necessárias e caminhar como paralelas. Alias, o plano de um milhão de cisternas está sendo realizado com a participação do governo, da Caritas, da ASA e de parceiros internacionais. Poderia alcançar mais rapidamente as metas, mas já vai chegando aos poucos a níveis expressivos. Uma alternativa não substitui a outra.

Que o plano técnico de uma possível transposição tem de levar em conta os interesses das populações ribeirinhas é inquestionável. Mas há também que entender as necessidades de outras áreas do semi-árido, onde sub-regiões mais ao norte da Bahia têm necessidades imperiosas. Acompanhei, na Conferência dos Bispos, desde alguns anos, fortes diferenças entre os que provinham dos diversos nordestes.

Observando nestes dias manifestações acaloradas contra a hidrelétrica do Madeira, com custos ao que faz crer razoáveis e benefícios a longo prazo para gerar energia, prevejo o mesmo tipo de protestos para as outras hidroelétricas na região. Que empreiteiras como a Odebrecht pensem basicamente nos seus lucros, faz parte da lógica perversa do sistema. Compete às outras empresas públicas e ao Estado chamar a atenção para os problemas humanos e ambientais. Porém, os que protestam, uma vez mais, não têm ao lado deles assessores capazes de ir muito além do emocional e do ideológico. No começo da revolução industrial, os pequenos produtores artesanais destruíam máquinas e novos teares, que punham em perigo seu ganha pão tradicional. Mas sabemos o que a nova tecnologia trouxe de avanço histórico. Por desinformação, no começo da industrialização soviética, os operários levavam as máquinas para suas casas. Veio a reação oposta e dura dos tecnocratas querendo defender os interesses do novo estado (e seu poder como nomenclatura nascente) que, superando um tempo de transição da NEP, chegou ao pior e repressivo stalinismo, que dizimou operários e camponeses. Estaremos prisioneiros de falsas ou simplistas alternativas?

É claro, precisamos de fontes de energia limpa, não poluidoras; as eólicas são bem-vindas, mas estão engatinhando. Temos outras fontes alternativas que a criatividade brasileira vem experimentando. Alguns pedem as nucleares, mas depois de Chernobyl dá para ficar um pouco reticentes. E o Brasil tem incríveis recursos hídricos. Os ambientalistas são contra umas fontes e outras. Mas o que fazer, prepararmo-nos para apagões mais à frente e um enorme freio à produção e à geração de emprego, em nome da defesa da natureza, como se as pessoas não fossem parte do planeta? Há um ecologismo fundamentalista paralisante.

A China cresce acelerada à força de uma terrível poluição - emulando os Estados Unidos -, desenraizando populações rurais e com o uso de trabalho praticamente escravo. Um filme chinês recente mostrava os resultados terríveis e destruidores para grandes populações rurais com a construção de uma enorme barragem. Em Nova Déli, vi com espanto um processo acelerado de industrialização convivendo com populações morrendo nas ruas, rodeadas de vacas sagradas intocáveis. Não haverá outras saídas? Como unir transformações econômicas indispensáveis com políticas sociais agressivas? Quando se fala das primeiras, ouvimos afirmações contundentes: políticas neoliberais. E diante das segundas os mesmos clamam: assistencialismo. No fundo há um cheiro azedo de má vontade principista.

Fala-se de transformações estruturais necessárias. Há que saber defini-las bem e entender que, para sua efetivação, há um processo longo e não instantâneo pela frente. Ou gostaríamos de recair nas receitas estatizantes e dinossáuricas do socialismo real que apodreceu? É imperdível o filme alemão "A vida dos outros", para os que tiveram crises com o fim inglório de uma contrafação de socialismo. Em nome da recuperação de um socialismo democrático, com o qual penso alinhar-me, transformações têm a ver com o crescimento gradual e difícil das forças produtivas, unido à criação de novas relações de produção, sem as quais os avanços seguem nas mãos dos setores dominantes. Mas sem as primeiras, teríamos estagnação que também recairia sobre as populações menos favorecidas. Não está já sendo experimentado, diante de nós, um círculo virtuoso em gestação, entre políticas econômicas concretas e ambiciosas e políticas sociais efetivas? Os dados dos últimos dias mostram um PIB crescendo 1,7% no ultimo trimestre do ano e 5,6% frente ao mesmo período em 2006. A meta de crescimento de 5% anual vai se fazendo plausível. A aceitação do governo cresceu em três pontos, na última pesquisa Ibope desta semana, apesar de campanhas violentas contra ele nos grande meios de comunicação. 51% dos entrevistados acha este governo ótimo ou bom. O povo sente na pele os resultados, mais que os ideólogos encurralados em seus preconceitos e no desconhecimento do país real. Nem se deram conta do impacto de programas tais como luz para todos, que mudou o cotidiano do mundo rural. Por outro lado, a derrota da CPMF num senado elitista e cheio de chantagistas que absolveu Renan, representa o fim de um imposto que favorece os mais pobres.

Em texto anterior, referi-me a posturas ideológicas - para Marx visão invertida da realidade - que não conseguem subir do abstrato dos princípios de um idealismo filosófico, à materialidade do concreto. Há atualmente um udenismo de esquerda que bate monotonamente na tecla de um moralismo sem raízes no real, principista e absolutista. Os que vivemos no Chile a sabotagem do MIR ao governo Allende, em aliança de fato com os golpistas, acreditamos estar vacinados contra essas posturas.

Vejamos neste contexto a Igreja Católica, com o bispo de uma diocese baiana pobre - Barra - no seu segundo jejum. Tivemos uma grande geração de bispos latino-americanos que começou com D. Hélder, Leonidas Proaño no Equador, Mendes Arceo no México, quase todos agora mortos ou aposentados. Mas ainda estão aí, atuantes e mais livres, pois sem responsabilidades administrativas, Pedro Casaldáliga, José Maria Pires, Cardeal Arns, Tomaz Balduíno, Waldyr Calheiros, Clemente Isnard.

Partiram cedo demais Franco Masserdotti e Jorge Marskell, mas segue conosco Moacyr Grecchi e foram surgindo o valente Demetrio Valentim e o indomável Erwin Krautler. É interessante que vários são estrangeiros, mas assumiram com paixão sua condição de brasileiros. Algo se move no episcopado. Nas últimas eleições para presidente, não foi eleito o secretário geral anterior, candidato natural à presidência, hoje cardeal, mas o sucessor do grande Luciano Mendes de Almeida em Mariana, o inteligente e receptivo Geraldo Lírio. E entre eles, há anos foi surgindo uma figura iluminada, grandes olhos alternando transparência quase ingênua com firmeza de convicções, o franciscano Luiz Flávio Cappio.

Chamei-o uma vez, em reunião de bispos, "meu bispinho", nova luz e esperança. Ainda frade, fez por um ano a bela romaria das nascentes do São Chico à sua foz, tão bem analisada em sua tese de doutorado por Nancy Mangabeira Unger, em texto que merecia ser publicado. Em reunião de seu regional, recém nomeado bispo, falou de temas congelados da Igreja (celibato obrigatório, ordenação de casados e de mulheres...), o que lhe valeu uma reprimenda inoportuna e fora de lugar do núncio. Trazia nele luz própria e alguma coisa de profeta. Porém, já na primeira greve de fome, preocupou com uma inflexibilidade e um absolutismo num caminho de difícil retorno. Os profetas, por mais incisivos e ásperos que tenham sido, sempre deixaram abertas as portas para o reencontro. Isso está claro em Isaías, profeta da dor pungente - o servo sofredor – mas também da alegria. Jó, no despojamento mais absoluto, não se isolou e obteve de Iahweh a reconciliação. Faltou algo semelhante nas atitudes de Cappio em defesa de seu rio. Digo isso porque me move para com ele um grande carinho e sinto uma expectativa posta em questão.

Depois daquele primeiro gesto extremo houve discussões, estudos e contribuições ao nível do social, do político e do técnico, até chegar a um projeto que venceu muitas barreiras e dúvidas, mas que certamente é sempre passível de revisões e de aperfeiçoamentos. E agora o gesto volta novamente numa radicalidade de não retorno. Antes de tudo, fica o receio de um resultado extremo na saúde e na resistência de figura tão singular. Mas devo dizer que muitas vezes, nos mais luminosos exemplos do mundo católico, dos melhores bispos e das mais generosas pastorais, sinto que têm dificuldade em manejar as mediações entre o mundo da Fé e as dimensões da política ou da técnica, numa absolutização mortal da primeira, com uma ética sem nuanças, podendo cair num moralismo atemporal e autodestruidor.

O que me faz desenvolver estas reflexões sofridas, porém impacientes, é a consciência preocupada da instrumentalização dos gestos de Luiz Cappio. Políticos do DEM viram romeiros, levanta-se uma certa esquerda, sempre à espreita para posicionar-se contra, às vezes com estardalhaço e emocionalidade. Interesses políticos não estarão capturando o gesto que parecia num primeiro momento profético e o aviltando? A profecia deve sempre ser livre e questionadora nas várias direções e não presa a uma bandeira ideológica que a apequene. Surge uma crítica ao governo em geral, com ares de oposição política, onde se fala até de ditadura hoje e de uma futura e indefinida democracia real.

Além disso, muitos vêm falando em martírio, o que parece grave e perturbador. Chesterton dizia que por acreditar realmente em milagres era contra seu uso banalizado, o que o levava a não acreditar nos apregoado milagres ao atacado. Algo parecido se passa com um ato tão sério como o martírio. Não basta apresentá-lo em nome de uma Fé mal explicada e reduzi-lo na defesa dos ribeirinhos do São Francisco, sem levar em conta outros pequenos ou pobres de diferentes partes do semi-árido e destes brasis afora. Tenho dificuldade de ver martírio na defesa de um rio, por mais simbólico que seja o Velho Chico. Respeitemos a seriedade e a radicalidade da noção de martírio.

Sei que me ponho com isso em contraponto com alguns companheiros de caminhada, mas há momentos em que calar é impossível, sem receio de perder simpatias e reconhecimentos. Não fazer isso seria solução de facilidade ou de oportunismo. É preciso ter coragem de dizer coisas difíceis e sofridas - com o risco, é claro, de engano ou simplificação -, mas na contramão de uma fácil unanimidade emocional.

Meu carinho por D. Cappio me obriga a posicionar-me fortemente contra sua instrumentalização, abastardando um gesto nobre, mas de uma radicalidade absolutizada, capturada por intencionalidades mais que discutíveis. Retome-se um diálogo adulto, de parte a parte, governo e bispo, mas fica difícil se este último se encerra na inflexibilidade de um absoluto não dialógico. Ao mesmo tempo, há que denunciar em voz alta o uso indevido de um testemunho para destruir um processo histórico brasileiro que caminha, certamente com falhas e dificuldades como todo processo histórico. A não ser que queiramos a volta revanchista de um tucanato sem compromissos com o país e com seus pobres; ou então entregar-nos aos devaneios vagos de um idealismo mal definido e jogando esperanças para um amanhã sem rosto nem data, fora de processos reais. Não é possível deixar um sinal escorregar em contra-sinal, capturado por intenções escusas. Bernanos, num de seus romances, mostrou com o melhor dos pastores, por ingenuidade ou moral sem raízes no cotidiano, pode cair prisioneiro de oportunismos inconfessáveis à espreita. E o que poderia ser testemunho e sinal - sacramento - se encolheria numa bandeira menor e mesmo eleitoreira, podendo também cair nas mãos dos que esperam processos futuros puros, improváveis e idealizados. Aplica-se o que creio que Merleau-Ponty disse de certos cristãos: não têm mãos sujas simplesmente porque não têm mãos. Seria um triste fim para um gesto que começou desprendido e generoso. Francisco de Assis ajude seu irmão e filho Luiz a um discernimento concreto de real fidelidade com os mais variados pobres e excluídos deste país e o livre de um clima contaminado por políticos mal-intencionados ou por um moralismo cego, que é a própria negação de uma ética inserida numa história concreta da libertação.

(Por Luis Alberto Gómez de Sousa, Agencia Carta Maior, 13/12/2007)
Luis Alberto Gómez de Sousa, sociólogo e ex-funcionário das Nações Unidas, é diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Cândido Mendes.

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