Ao gerar avanços tecnológicos, o desenvolvimento científico tem contribuído para o bem-estar da humanidade ao longo da história. Mas, ao mesmo tempo, possibilitou desastres humanitários e ambientais de proporções incalculáveis. Até que ponto o cientista é responsável pelas consqüências positivas ou negativas de seu conhecimento?
Esse foi o mote do seminário “A responsabilidade social dos cientistas”, realizado na segunda-feira (10/12) pela Cátedra Unesco de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, na sede do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP).
“O conhecimento não é neutro. Ele é construído no interior de um universo ético e cultural que precisa ser debatido de um ponto de vista crítico. Por isso resolvemos lançar essa discussão”, disse o sociólogo Sérgio Adorno, coordenador da Cátedra, à Agência Fapesp.
Segundo Adorno, o seminário, que contou com a participação exclusiva de pesquisadores da área de física, é o primeiro de uma série que debaterá tópicos como a aplicação da ciência para fins militares, o impacto do avanço tecnocientífico no meio ambiente, a distribuição dos benefícios resultantes do progresso da ciência e a difusão científica como problema da educação para a paz.
“Hoje, a discussão sobre a responsabilidade social do cientista gira em torno de questões bioéticas em áreas como organismos transgênicos, bioterrorismo e uso de células-tronco embrionárias para fins terapêuticos. Mas optamos por começar os debates com os físicos, que, com o desenvolvimento das armas nucleares em meados do século 20, acumulam longa experiência com os dilemas do conhecimento”, explicou.
Para o professor do Instituto de Eletrotécnica e Engenharia da USP José Goldemberg, tais dilemas são praticamente insolúveis, uma vez que o cientista não tem controle das repercussões sociais de seu trabalho. O físico conta ter sentido isso na pele quando trabalhou em Stanford, nos Estados Unidos, em 1962, em plena Guerra Fria.
“Trabalhava com aceleradores lineares, usando radiação eletromagnética para investigar o núcleo dos átomos. Tinha o foco no meu trabalho, mas também tinha consciência de que ele poderia ser usado mais tarde para a fabricação de uma bomba portátil, o que felizmente acabou não acontecendo”, disse.
Para Goldemberg, no entanto, cabe à sociedade, e não ao cientista, regular o uso do conhecimento. “A sociedade é que tem que resolver. Seria muita pretensão do cientista querer ter domínio sobre todos os desdobramentos da ciência.”
Por outro lado, segundo Goldemberg, muitas vezes o cientista, absorvido pelo conteúdo de seu trabalho, perde de vista eventuais conseqüências. E quando as percebe, pode ser tarde demais, como ocorreu em uma das páginas mais sombrias da história: o lançamento de bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão, em 1945.
De acordo com Goldemberg, o mentor da bomba atômica, Robert Oppenheimer, chegou a procurar o presidente norte-americano Harry Truman para solicitar que a bomba atômica fosse usada apenas em demonstrações sobre o Pacífico, mas não sobre populações.
“Consta que, assim que Oppenheimer virou as costas, Truman ordenou: ‘nunca mais me tragam esse tolo aqui’. Hoje vemos que Oppenheimer foi incrivelmente ingênuo. Mas é o que faria qualquer cientista que eu conheço”, disse.
Discussão política
A física Amélia Hamburger, professora do Instituto de Física da USP, também citou um caso histórico: em 1944 o físico Niels Bohr conseguiu uma entrevista com Winston Churchill e sugeriu que, para impedir uma corrida armamentista no pós-guerra, as pesquisas sobre energia atômica fossem internacionalizadas. Os estudos seriam feitos em consórcio com a União Soviética.
“O único resultado da petição foi que Churchill ordenou imediatamente que Bohr fosse vigiado de perto pelo serviço secreto”, disse Amélia. “Mas, como Bohr, vários cientistas se manifestaram espontaneamente contra o uso bélico dos avanços científicos.”
Segundo Amélia, o engajamento do cientista não é suficiente. Os produtos da ciência podem tomar rumos indesejado ao sabor dos interesses políticos. “Minha proposta é que essas questões devem ser discutidas profundamente no interior dos partidos políticos, já que são eles os representantes legítimos da sociedade”, disse.
Para a professora, a responsabilidade social do cientista não se distingue da responsabilidade social de qualquer cidadão. “O cientista é um cidadão que tem um conhecimento diferenciado sobre um assunto. Nada mais”, argumentou.
A física e conselheira da Cátedra Unesco Dina Lida Kinoshita ressaltou que a fragmentação da ciência limita as chances de o cientista prever as aplicações de seu trabalho. “A fragmentação é muito grave. Um pesquisador pode estudar os estados eletrônicos de uma molécula hipotética de urânio sem se dar conta de que esse conhecimento pode fazer parte do desenvolvimento de armamentos”, disse.
Para ela, mesmo com o fim da guerra fria, o cientista da área nuclear vive próximo dos dilemas éticos. “O problema é que os programas nucleares nunca vêm desacompanhados de projetos militares. E, mesmo hoje, diversos países continuam construindo artefatos bélicos desse tipo”, afirmou.
Fernando de Souza Barros, professor aposentado do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), concordou que a questão nuclear ainda gera dilemas éticos.
“Vivemos em uma sociedade de risco com base na economia. Vários países possuem bombas atômicas, que poderão ter um papel importante na luta pelas reservas do planeta, cada vez mais escassas”, afirmou.
Para Barros, no entanto, a responsabilidade social da ciência não é mais um assunto interno dos cientistas. “Atualmente, milhões de técnicos no mundo todo conhecem o método científico e o usam a serviço de estados e grandes corporações. O cientista formula as questões, mas o pesquisador pode estar em qualquer setor da sociedade. A responsabilidade está diluída na sociedade. Ela extravasou o âmbito da ciência no sentido estrito”, afirmou.
A ordem política da Guerra Fria, que permitiu montar um tratado de não-proliferação, está completamente falida, segundo Barros. Com isso, a pesquisa nuclear deverá fazer parte de uma nova ordem.
“Devíamos dar mais atenção à proposta do diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica, Mohamed ElBaradei, que defende que países como Brasil e Argentina façam pesquisa nuclear em consórcio”, destacou.
(Por Fábio de Castro, Agência Fapesp, 11/12/2007)