Dom Luiz Cappio, na sua luta contra a obra de transposição do Rio São Francisco, retomou o que ele chama de "jejum e oração". Um bispo católico em jejum contra uma obra tão polêmica como essa não poderia ficar fora do noticiário dos grandes jornais e também das TVs.
Eu não quero discutir aqui se essa obra beneficia ou não o povo nordestino, e nem se o bispo está correto ou não fazendo esse jejum, (pois isto exigiria discutir muitas questões técnicas que eu não tenho conhecimento suficiente), mas sim a linguagem usada pelos meios de comunicação para falar desse "protesto" do bispo. Quase todos os jornais, TVs, sites e rádios, sejam grandes ou "alternativos" (incluindo aqui o Adital) estão usando indistintamente a palavra "jejum" e a expressão "greve de fome", como se elas fossem sinônimas. Entretanto, Dom Cappio, na sua "Carta ao Povo de Nordeste", de 30 de novembro de 2007, só fala de "jejum e oração" e não usa nenhuma vez a expressão greve de fome.
Jejum e greve de fome são sinônimos?À primeira vista, essas expressões parecem ser intercambiáveis, mas, se olharmos com cuidado, podemos ver que há situações em que não são. Por exemplo, um prisioneiro político não faz "jejum e oração", mas sim greve de fome para protestar ou para marcar uma posição política; assim como um grupo religioso não faz greve de fome como um "exercício espiritual", mas sim jejum e oração. Isto nos mostra que nos extremos há uma diferença importante entre a greve de fome e jejum. A primeira está mais ligada ao campo político, enquanto que a segunda vem das tradições religiosas. O problema é que a realidade não é tão clara como os extremos, mas em geral é feita de ambigüidades e sombras que marcam a região que fica entre os extremos. É o caso do "jejum" do dom Cappio. Ele diz que é "jejum e oração", mas até os seus defensores usam indistintamente "jejum" e "greve de fome".
A confusão ou uso indistinto de jejum e greve de fome para se referir ao "protesto" do dom Cappio tem a ver com a relação entre a fé e política ou entre a religião e política. Não precisamos entrar novamente na discussão sobre como a fé e a religião têm relações com a política, mas também não podemos esquecer que se a fé tem relação com a política, ela não é (igual a) política. Pois, se não houvesse diferença entre ambas, não haveria relação. Esta distinção é importante não só para entendermos o ato de dom Cappio, mas também para potencializarmos esses tipos de ações.
O jejum de dom Cappio tem a cobertura na mídia que tem porque ele é um bispo da igreja católica. Se ele fosse um simples homem comum, ninguém estaria dando muita atenção. Por outro lado, se ele estivesse fazendo somente um discurso ou ato político, também teria pouca repercussão ou seria visto simplesmente como um bispo "fazendo política", isto é, extrapolando o seu campo de atuação ou função. Mas, como ele está fazendo ‘jejum e oração" (um ato religioso), protestando contra a obra da transposição (ato sócio-político), cria um impacto.
A força social e política da ação de um agente religioso (ou de uma instituição religiosa) repousa, em parte, na credibilidade da religião que professa. Portanto, as ações de um bispo (ou de um/a outro/a agente reconhecido pela sociedade como religioso/a) têm impacto na consciência social e modifica as relações de força na sociedade na medida em que é uma ação religiosa, e, portanto, carregada de força simbólica. Sem o peso do simbolismo de um bispo fazendo "jejum e oração" à beira de um rio na defesa das comunidades pobres do nordeste, esta "greve de fome" teria muito pouco impacto. Por isso, eu penso que devemos nomear a ação do dom Cappio como "jejum e oração" (como ele nomeia corretamente) e não como greve de fome.
Isto não é uma mera questão de semântica; expressa também uma forma de ver a relação entre a religião e sociedade/política. Ações religiosas ou ações humanas que expressam a fé religiosa em dado contexto histórico têm implicações sociais e políticas, queremos ou não; mas nem por isso deixam de ser ações religiosas. Não perceber o caráter espiritual-religioso do jejum e oração e reduzi-lo a um simples protesto social ou político, greve de fome, é um equívoco que enfraquece a força transformadora da fé.
(Por Jung Mo Sung *,
Adital, 06/12/2007)
* Professor de pós-grad. em Ciências da Religião da Univ. Metodista de S. Paulo e autor de Sementes de esperança: a fé em um mundo em crise