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patrimonio historico
2007-12-05

Para se chegar ao Sítio São Francisco, é preciso muita disposição e um bom preparo físico. Sobe-se, por um caminho rústico de terra, uma distância de 270 metros morro acima. O percurso é sujeito a tropeços e escorregões: o caminho tem trechos em que a terra se transforma num barro escorregadio, a sombra das árvores dificulta a visibilidade, e os insetos não dão trégua.
 
A escalada vale a pena. O Sítio São Francisco é uma verdadeira preciosidade arqueológica – sim, a palavra “sítio” que denomina o local não se refere a um lugar com pomares e animais, e sim ao sítio arqueológico que se encontra ali. Vestígios de uma fazenda do século XVIII que foram cobertos pelo morro e que permaneceram ignorados por anos e anos, até seu trabalho de resgate, capitaneado pelo arqueólogo Wagner Bornal, doutorando do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.
 
Bornal pesquisa o local há mais de 10 anos. Atualmente, o São Francisco tornou-se até mais uma opção turística para a cidade de São Sebastião, onde está localizado – os trabalhos são impulsionados por uma parceria da prefeitura municipal e do Parque Estadual da Serra do Mar. E a descoberta recente de duas novas áreas deu um novo fôlego para as pesquisas, sugerindo mais elementos para compreensão da história dessa área de cerca de um milhão de metros quadrados.

Clandestino

A equipe de Bornal já conseguiu resgatar as principais estruturas da fazenda que havia no local. Hoje se pode ver ali os alicerces da casa-grande, dos fornos para produção de açúcar e da capela, construção que se verifica em todas as fazendas da época, mas no São Francisco tem dimensão até superior ao habitual.
 
A arquitetura do sítio sugere que sua utilidade pode não ser aquela que as construções indicam. Segundo Bornal, há indícios que o local servia, na prática, como um centro de tráfico de escravos – atividade já proibida à época mas que ainda se mostrava como das mais lucrativas. Um dos elementos que mais corrobora a hipótese é a ausência de registros documentais da fazenda e suas atividades. “É como pensarmos em um local usado, nos dias atuais, para o tráfico de drogas. Ele está ali, tem atividade intensa, mas nunca poderia ser formalmente registrado”, diz o arqueólogo.
 
Os poucos registros históricos que há sobre o sítio misturam-se com uma série de lendas. Sobre o último proprietário do local, de nome Joaquim Pedro, dizia-se que era um sujeito dos mais temidos e que seu caráter não era de grande valor. Tem força na região uma história que conta que Pedro teria feito um “pacto com o diabo”, o que lhe garantiria a posse da grande fazenda. E que o “coisa-ruim” teria cobrado a contra-partida que Joaquim Pedro não lhe deu – e, como vingança, rompeu a barragem de água que abastecia a fazenda, gerando a inundação e a destruição do patrimônio.
 
Diabo e lendas à parte, o fato é que o rompimento da barragem realmente ocorreu. E fez com que o abandono da fazenda fosse oficializado – segundo Bornal, as pesquisas sugerem que o sítio deixara de ser habitado ainda antes do acidente. O sistema de fornecimento de água do sítio, aliás, é de uma sofisticação que impressiona. A nascente que abastece a fazenda está distante mais de um quilômetro da sede; um requintado processo de canalização, com telhas feitas pelos próprios escravos – pode-se ver as marcas dos dedos –, traz a água até a sede da fazenda e a outros locais, inclusive a pia batismal da capela.
  
Início

O começo dos trabalhos no Sítio São Francisco tem um quê de lenda. Ou melhor, de se acreditar no dito pelos moradores da região, mesmo que não haja uma comprovação precisa. Wagner Bornal suspeitou da possível existência de achados arqueológicos no local quando ouviu relatos de um senhor que morava próximo ao sítio, descendente de escravos, que dizia que seus antepassados haviam trabalhado numa fazenda localizada ao topo do morro. Com esse relato, Bornal passou a tentar uma investigação mais precisa sobre o local. E as suspeitas da existência de um sítio arqueológico foram praticamente comprovadas quando se verificou fotos aéreas do morro.
 
“Observamos, ali, a existência de trechos bem geométricos que apresentavam uma vegetação diferente do restante do local”, explica o arqueólogo. A técnica, denominada estereoscopia, é usada rotineiramente na arqueologia e seus resultados costumam ser eficazes. A aparição de árvores diferentes em um retângulo perfeito sugere que o local pode abrigar os alicerces de uma construção, e por isso as plantas, que nasceram sobre o local, crescem de maneira distinta das demais, que se desenvolvem no terreno livre.
 
Bornal recrutou uma equipe e, nos primeiros instantes de trabalho, descobriu uma área de 1.500 metros quadrados de sítio arqueológico. “Já parecia uma grande conquista”, comenta. Hoje, com a descoberta das novas áreas, o total já supera um milhão de metros quadrados.
 
As duas descobertas mais recentes, denominadas áreas II e III, colaboram na percepção da função real do sítio. Ambas são interligadas com a área principal por uma sofisticada rede de estradas. Estas eram destinadas para o transporte de cargas – em algumas, a largura é da exata dimensão de uma mula carregada – e também para a circulação de pessoas, como os trabalhadores e os “espiões” da fazenda.
 
“A área II tem visibilidade privilegiada. Ficava voltada para o mar, de modo que os trabalhadores poderiam verificar se, por exemplo, alguém estava subindo o morro em direção à fazenda”, diz Bornal.

Equipe

O trabalho no Sítio São Francisco, hoje, é essencialmente multidisciplinar. Wagner Bornal é, além de arqueólogo, historiador. Clayton Galdino, bacharel em turismo, compõe a equipe e estuda a viabilidade turística do local. Há também a presença de especialistas em computação, que analisam as imagens aéreas. E, claro, um sem-número de colaboradores que atua na retirada da terra que cobre o sítio e abrindo o mato para as caminhadas.
 
Para Bornal, o envolvimento dos moradores da cidade com o sítio é imprescindível. Os ganhos, segundo o arqueólogo, se traduzem pela valorização do local onde moram e também pelo acréscimo de uma educação patrimonial, algo que, no Brasil, ainda é pouco aplicado. O arqueólogo comemora o fato de que, nos próximos anos, deve ser ampliado o uso do Sítio São Francisco pelas escolas da rede pública de São Sebastião. “Integração com a comunidade: é isso que buscamos”, cita Bornal. 
 
O arqueólogo Wagner Bornal fala sobre os símbolos que decoram o Sítio São Francisco, destacando a abrangência de representações

(Por Olavo Soares, Agência USP, 04/12/2007)

 


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