No tempo em que era seringueira, Marina Silva defendia a floresta sem saber o significado da palavra ecologia. Parceira de Chico Mendes nos embates com madeireiros do Acre, completa seu quinto ano à frente do Ministério do Meio Ambiente tocando um projeto que talvez deixasse o antigo companheiro perplexo: a concessão de florestas a grupos privados para exploração econômica em moldes auto-sustentáveis.
- Chico Mendes lutou contra a grilagem de terra como se fazia naquela época. Foi justamente por lutar contra isso que ele morreu. Tenho certeza de que ele acharia nossa iniciativa ousada - insiste, em entrevista ao JB.
Às vésperas da Cúpula do Clima, em Bali, na Indonésia, que vai discutir a emissão de gases poluentes, ela afirma que o Brasil faz o dever de casa ao reduzir os níveis de desmatamento em torno de meio bilhão de toneladas nos últimos três anos.
Do outro lado do balcão, a morena franzina que migrou dos seringais ao Planalto, com uma passagem pelo Senado, garante ter os ouvidos ajustados a todo tipo de cobrança.
- Nesses cinco anos eu tenho sido constrangida o tempo todo. Engulo em seco as cobranças - afirma, batizando esse comportamento de "constrangimento ético", o combustível que, segundo ela, move o homem público em direção aos anseios da sociedade.
A senhora gosta de dizer que política ambiental não se faz para as pessoas, mas com as pessoas. Daqui a alguns dias, a senhora estará indo para a conferência na Indonésia. Qual a mensagem que o Brasil vai levar aos países desenvolvidos? Como fazer para envolver as nações ricas nesse esforço para reduzir as emissões de carbono na atmosfera?
- No caso brasileiro, nós temos trabalhado muito fortemente a idéia de que ainda que os países em desenvolvimento não tenham responsabilidades obrigatórias, isso não significa que não tenham responsabilidades. O plano de combate ao desmatamento reduziu a emissão em torno de meio bilhão de toneladas nos últimos três anos. E isso é significativo, representa 14% de tudo o que teria que ser reduzido pelos países ricos até 2012, o que é uma contribuição fantástica. O Brasil tem uma matriz energética renovável em 45% comparativo a países desenvolvidos, que é de apenas 6%. Isso é também altamente relevante. Estamos com uma grande contribuição a aportar não só para o nosso país, mas também para regiões da África, da Ásia e da América Latina e Caribe, que é a questão dos biocombustíveis. Então, o Brasil vai com uma agenda pró-ativa. E vamos estar trabalhando para que o encontro não signifique um momento de desconstrução dos avanços, dos esforços multilaterais que já tivemos.
O próprio presidente Lula costuma dizer que os países que desmataram durante séculos não podem cobrar dos que estão começando agora a se desenvolver. Como essa agenda pode conciliar desenvolvimento acelerado e preservação do potencial ambiental?
- É claro que os países em desenvolvimento, como Brasil, China e Índia, já têm um nível de emissão significativo. Mas, do ponto de vista histórico, a nossa contribuição é pequena se comparada aos países que começaram desde o século 19, na Revolução Industrial. Isso não significa, no entanto, que nós tenhamos de reivindicar o direito de cometer os mesmo erros. Nós não queremos. Nós apresentamos a proposta brasileira de incentivo positivo pela redução das emissões e execução da diminuição do desmatamento, a Noruega já está discutindo aportar recursos nessa proposta. Existem vários países que estão se dispondo a conversar conosco, e nós queremos viabilizar um mecanismo que nos ajude a mudar o modelo de desenvolvimento. Porque hoje nós estamos reduzindo o desmatamento com ações de força. Fiscalização, criação de unidades de conservação, prisão de pessoas. Mas você tem de colocar algo no lugar. Nesse momento, é necessário um programa de desenvolvimento sustentável.
O relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) apresentado semana passada, que marcou a entrada do Brasil na lista de países com alto índice de qualidade de vida é um trunfo nessa negociação?
- É um resultado que nós temos de celebrar, pois trata-se do fruto de um conjunto de esforços feitos nos últimos anos. E ainda não chegamos a medir os esforços dos últimos dois anos. Porque nos últimos dois anos, nós tivemos uma redução de pobreza de 19,4% - o relatório foi até 2005. Com certeza, em 2012, quando o novo relatório for apresentado no Brasil, o país, com muito trabalho e a graça de Deus, já estará numa posição, espero, que seja bem melhor que essa. Mas isso, sem sombra de dúvida, é algo positivo não só para o governo, mas sobretudo para a sociedade brasileira. Estar reduzindo desmatamento, diminuindo pobreza, promovendo uma discussão de como viabilizar crescimento econômico com proteção ambiental é algo muito importante para a nossa sociedade.
No momento em que se discute o papel do Brasil como potência ambiental e a defesa da Amazônia torna-se ainda mais necessária, o governo soltou o primeiro edital de concessão das florestas públicas. Uma ala contrária alega que o governo não tem estrutura para fiscalizar a exploração dessas áreas pelas empresas. O país já está preparado para isso?
- O projeto de concessão de florestas foi pensado, tem estratégia, é só verificar o que aconteceu. Foi apresentado e aprovado em dois anos. Temos um sistema de monitoramento por satélite em tempo real que vai nos permitir fiscalizar as concessões da mesma forma que a Receita fiscaliza você. É claro que as pessoas ainda precisam ver para crer, mas é só ver a quantidade de investigados pela Polícia Federal e pelo próprio Ibama com o novo sistema. A Amazônia tem 165 mil km² de área já desflorestada, semi-abandonada. Nós podemos triplicar a nossa produção sem precisar derrubar mais uma moita, se investirmos em aplicar a tecnologia que a Embrapa já tem, por exemplo. Essa economia de rapina de achar que você usa uma terra por cinco anos e depois vai derrubar floresta pra garimpar nutriente para criar gado é que precisa acabar.
Como a senhora acha que Chico Mendes, se estivesse vivo, lidaria com um projeto de concessões florestais? Ele estranharia?
- O que o Chico Mendes achava estranho era a privatização. O que a União está dizendo? Terra pública é terra pública e vai continuar sendo. Você terá uma concessão, um comitê independente vai fazer a fiscalização e se as cláusulas não forem cumpridas, a empresa terá a concessão cassada. Isso com certeza o Chico Mendes iria achar uma medida ousada. Continuar fazendo grilagem de terra, como se fazia naquela época, é que ele não aprovaria. Foi justamente por lutar contra esse estado de coisas que ele morreu.
Política ambiental se faz a longo prazo. Como se ganha a sociedade para esse tipo de causa?
- Eu digo que nesses cinco anos eu tenho feito um governo para "os grandes coisas". Isso porque quando resolvemos um problema, vem alguém e diz: "Grande coisa; eu quero ver é resolver aquele outro". Tenho sido constrangida o tempo todo. Engoli em seco as cobranças, mas a minha avó me dizia: "Quem leva o cachorro, leva as pulgas". Sou governo há cinco anos, e não importa se as pulgas são de 30, 100, ou 200 anos de uma visão que tratou a natureza como se fosse sua latrina e sua despensa ao mesmo tempo.
(Por Affonso Nunes e Kayo Iglesias,
Jornal do Brasil, 02/12/2007)