Não é de hoje que os veículos de passeio têm sido vistos como vilões. Primeiro, pelo preço do petróleo, que desencadeou a corrida por combustíveis alternativos, o que levou o Brasil à opção pelo álcool e sua adição à gasolina e mais recentemente à sua utilização em motores bi-combustíveis. Depois, pelos problemas ambientais decorrentes do efeito estufa provocado pela emissão do gás carbônico, gerado na queima dos combustíveis fósseis e que despontaram como um dos principais causadores de alterações climáticas.
Hoje, mesmo com o preço do barril do petróleo vencendo a barreira dos U$ 90,00 e as recorrentes ameaças de sua progressiva escassez, é a sirene despertada pelos problemas ambientais que tem levado à corrida por combustíveis cada vez mais limpos.
A solução definitiva e perfeita seria o gás hidrogênio, obtido da água e de diferentes biomassas, que, ao reagir com o gratuito oxigênio do ar, em um dispositivo adequado chamado célula a combustível, retorna à atmosfera na forma de água e libera uma corrente elétrica capaz de acionar um silencioso motor elétrico.
Sem ruídos e barulhos, reduzem-se a poluição e o efeito estufa. Sonho? Nem tanto. Células a combustível já são utilizadas na Europa em protótipos de ônibus urbanos. Movem também carros pré-comerciais em estados norte-americanos, como o da Califórnia.
Em São Paulo, maior cidade da América Latina, que enfrenta problemas crônicos de poluição, gerados em grande parte pela utilização de combustíveis fósseis em veículos leves que por ela circulam em grande número, seria viável a utilização do hidrogênio? Quanto custaria a infra-estrutura necessária? O hidrogênio teria preço compatível? A tecnologia do carro a hidrogênio já está dominada? Qual o custo desses veículos? E quanto mais se teria que produzir de energia elétrica para garantir o sistema?
As respostas a estas indagações estão na tese de doutorado de Paulo F. P. Ferreira, pesquisador no Laboratório de Hidrogênio do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp, em trabalho orientado pelo professor Ennio Peres da Silva, chefe do laboratório e professor do IFGW. O estudo discute a “Infra-estrutura para uso energético do hidrogênio: estações de abastecimento para veículos” e foi apresentado à área de Planejamento de Sistemas Energéticos da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM).
Constituiu objetivo do trabalho o desenvolvimento de uma metodologia que permita o dimensionamento de estações de abastecimento de hidrogênio de uma frota hipotética de veículos de passeio que utilizem células a combustível, partindo da estimativa do seu número e de suas características de consumo e rodízio.
Outro foco foi a determinação do impacto decorrente da utilização da eletrólise da água para sua produção. Teve com base estritamente a cidade de São Paulo, que apresenta maior concentração de veículos e maiores problemas ambientais e que, conseqüentemente, mais se beneficiaria com a utilização de um combustível limpo.
O trabalho projeta, para o ano 2020, a produção de hidrogênio em estações de abastecimento para o suprimento de uma frota hipotética de veículos leves – carros de passeio e caminhonetes para transporte de pequenas cargas, utilizando células a combustível. Com base na frota prevista, estima o número de veículos passíveis de serem abastecidos pelo gás. Projeta a capacidade de produção das estações de abastecimento de hidrogênio levando em conta o número de estações de abastecimento de Gás Natural Veicular (GNV) já instaladas na cidade, o número de veículos que utilizam GNV e o custo das instalações desses postos.
O direcionamento dos principais componentes das estações de abastecimento de hidrogênio foi realizado considerando três cenários: produção de 40 m³/h, utilizando compressor específico (C1); produção de 160 m³/h e compartilhamento com o compressor do GNV existente (C3); produção de 160m³/h, com compressor não compartilhado(C2). Em cada um dos casos foi calculado tanto o custo de produção de hidrogênio como o do quilômetro rodado para veículos a células a combustível. O trabalho considera também o impacto da utilização da eletricidade na produção do hidrogênio na composição da matriz energética do setor de transportes.
Segundo o professor Peres, nos últimos dez anos a indústria automobilística vem investindo grandes recursos no desenvolvimento de veículos movidos a hidrogênio, o que a levou a automóveis compatíveis com os convencionais em termos de desempenho e dirigibilidade. Diz ele que “atualmente não existem empecilhos técnicos à comercialização desses veículos, exceto pela ausência de uma estrutura de abastecimento”.
Ressalva, entretanto, que há necessidade de uma drástica redução nos custos desses veículos que, em uma fase inicial de produção, dependerão de fortes subsídios governamentais, advindos de uma renúncia fiscal ou outros mecanismos, até que a produção em escala e o amadurecimento tecnológico permitam a fabricação a custos compatíveis com os dos veículos convencionais.
O docente lembra que existem pelo menos sete empresas no mundo que possuem elevado grau de desenvolvimento da tecnologia de veículos tocados a hidrogênio, das 34 que têm se dedicado a ela.
As projeções realizadas mostram que a montagem de uma estação de abastecimento de hidrogênio com produção de 40m³/h tem custo compatível com as instalações de GNV, que hoje é de aproximadamente de um milhão de reais.
O custo do quilômetro rodado com hidrogênio resulta cerca de 11,4% maior do que o da gasolina. Entretanto, Ferreira considera que a ampliação do prazo de retorno do investimento, através de financiamentos mais longos, e a diminuição da tarifa da energia destinada à produção do combustível, possam tornar o hidrogênio competitivo com todos os demais combustíveis.
Resolvidos estes problemas, o professor Peres entende que o principal entrave seria o custo do veículo que está em torno de cem mil dólares, mas que, segundo projeções das empresas produtoras, deve se reduzir à metade em curto tempo, mas ainda assim insuficiente para viabilizar sua ampla utilização.
O orientador da pesquisa lembra que a utilização da energia elétrica na área de transporte no Brasil é hoje insignificante. Se viabilizado o hidrogênio para veículos da cidade de São Paulo, seu crescimento seria de 300%, segundo as projeções do trabalho, o que equivaleria 300MW, que corresponde à produção de uma hidroelétrica de porte médio. Ele afirma que isto poderia representar um incremento e um estímulo no mercado das distribuidoras de energia.
Peres e Ferreira concordam que, embora a reforma do etanol não esteja totalmente consolidada, a análise da viabilidade econômica do hidrogênio que viesse a ser produzida a partir do etanol pode levar a resultados financeiros mais positivos que a eletrólise da água. Ambos sugerem que as pesquisas continuem nessa direção.
Como funciona
O hidrogênio, abastecido pela entrada de combustível, ao entrar em contato com o catalisador existente no ânodo é dissociado em dois íons H+ e dois elétrons (e-). O oxigênio, abastecido pela entrada de oxidante, dissocia-se em íons O-2. Os íons H+ atravessam o eletrólito e, ao chegarem ao cátodo, combinam-se com o íon O-2 e com os elétrons liberados no ânodo, formando uma molécula de água (H2O). Os elétrons liberados no ânodo percorrem um circuito externo, constituindo uma corrente elétrica.
O que são células a combustível
Células a combustível são dispositivos eletroquímicos que permitem a transformação direta da energia química contida no combustível em energia elétrica. Guardam uma certa semelhança com as baterias, que fornecem uma corrente contínua a partir de uma reação química, com a diferença de que estas precisam ser recarregadas e aquelas apenas alimentadas continuamente de hidrogênio.
Veículos elétricos que utilizam células combustíveis vêm sendo desenvolvidos por várias montadoras na forma de protótipos. O motor elétrico permite eliminar sistemas de transmissão e caixa de câmbio e amplia sobremaneira o uso da eletrônica embarcada, abrindo espaço para sistemas controlados por softwares, que exigem cada vez menos a interação do piloto com o veículo.
O hidrogênio pressurizado e armazenado à pressão de 350 bar pode ser produzido através da eletrólise da água, que oferece múltiplas vantagens: utiliza tecnologia dominada; tem alto grau de pureza o que dispensa caros sistemas de purificação; gera como único subproduto o oxigênio; os eletrolizadores necessitam apenas da infra-estrutura básica de suprimento de água e eletricidade, o que torna o processo aplicável nos postos de abastecimentos existentes.
(Por Carmo Gallo Neto, Jornal da Unicamp, 28/11/2007)