Após cinco meses do início de um acordo entre o governo federal e o Piauí para socorro às vítimas da seca, os R$ 2,5 milhões prometidos pela União ainda não chegaram aos cofres do Estado. O período de seca, que durou mais de nove meses, está próximo do fim: já chove no sul do Estado, segundo o meteorologista Mainar Medeiros, da Secretaria de Meio Ambiente do Piauí.
O convênio prevê a transferência de recursos para que o Estado substitua o Exército na operação de abastecimento de água. Carros-pipa são contratados para atender os municípios atingidos pela estiagem. A tramitação teve início em maio deste ano, com um ofício enviado ao Ministério da Integração Nacional pelo governo piauiense, solicitando o gerenciamento da operação.
Em 6 de outubro, reportagem especial do UOL já apontava que o acordo entre o governo estadual e o federal demorava a ser efetivado. Um mês e meio depois, o convênio continua tramitando: o dinheiro já está separado desde 9 de outubro, mas ainda não chegou aos cofres estaduais, em um exemplo de como a burocracia atrapalha inclusive o atendimento de questões emergenciais no Brasil.
Estima-se que cerca de 1 milhão de pessoas sofreram as conseqüências da seca no Piauí. O problema se agravou quando o Exército interrompeu o abastecimento no Estado, após o anúncio do convênio. Entretanto, a pedido do governador, Wellington Dias (PT), os militares retomaram os trabalhos na penúltima semana de setembro, para suprir, provisoriamente, a demanda enquanto a parceria não era oficialmente firmada. "Depois que o Piauí viu que a coisa (o convênio) não seria fácil, disse: 'Queremos que o Exército forneça enquanto nós nos arrumamos'", disse, na época, o secretário nacional da Defesa Civil, Roberto Guimarães. Segundo informações da assessoria de imprensa do Governo do Estado, dos 223 municípios do Piauí, 150 encontravam-se em situação de emergência.
“Essa ‘lerdeza’ da máquina pública é uma agressão à cidadania. Não fazer porque não tem dinheiro já é grave; agora ter o dinheiro, como neste caso, e não realizar por pura burocracia é desserviço à população e negação do direito público”, opinou o professor do Departamento de Administração da FEA - Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP - Universidade de São Paulo, Isaías Custódio, que analisou o caso a pedido do UOL.
Segundo o gerente do Cenad - Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres, Max Werner Maia Bandeira, o Piauí é, atualmente, um dos nove Estados atendidos pela Operação Carro-Pipa do Exército, que consegue, por meio de destaque orçamentário, dinheiro para atender emergências de forma imediata. “Entretanto, o Estado quis ser pioneiro em assumir a operação, e isso requer um procedimento extenso e demorado. Perante a legislação, para se firmar um convênio, não importa a emergência da verba. É preciso seguir à risca o que está previsto na lei. Desde o início da tramitação, a Defesa Civil Estadual foi informada de que se tratava de um processo complexo e foi orientada sobre como deveria agir”, explicou o gerente.
O Estado argumenta que tem respeitado e enviado toda a documentação solicitada para a União, além de fazer as alterações e retificações requisitadas. Além disso, afirmou, por email, que “toda semana, técnicos da Secretaria Estadual de Defesa Civil estão em contato com autoridades de Brasília para acompanhar e tentar acelerar o processo do convênio”.
O anúncio sobre a mudança no sistema de abastecimento de água foi feito em 6 de julho, em Teresina, pelo ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, na presença do governador do Estado, Wellington Dias (PT). Entretanto, o processo já tramitava em Brasília desde 28 de maio, data em que, segundo a Sedec - Secretaria Nacional de Defesa Civil, foi recebido o primeiro ofício (nº 89/2007) da Secretaria Estadual de Defesa Civil do Piauí, solicitando o remanejamento dos recursos federais.
De lá para cá, os dois poderes estão enrolados em um processo burocrático de entrega, retificação e adequação de documentos que mais lembra um jogo de empurra-empurra e que parece não ter fim.
Segundo o secretário de Defesa Civil do Piauí, Fernando Monteiro, o Estado tem mandado toda a documentação pedida pelo governo federal para a liberação dos R$ 2,5 milhões referente ao convênio. "Acontece que são documentos bem minuciosos, bem detalhados. Temos que fazer praticamente um 'censo' dos municípios que estão em estado de emergência", disse ao UOL.
“Do primeiro ofício do Estado do Piauí, em 28 de maio, até a primeira resposta da Secretaria Nacional de Defesa Civil, com a emissão de uma nota técnica em 3 de julho, passaram-se 35 dias corridos. Esse tempo poderia ter sido reduzido por ações de ambas as partes envolvidas. O Estado poderia ter seguido as instruções no site do Ministério da Integração Nacional e já mandado, no primeiro contato, a documentação básica (plano de trabalho, principalmente) para o remanejamento de verbas, e não apenas um ofício; o ministério, por sua vez, ao receber o ofício e constatar a falta de documentos, poderia ter contatado o Estado de imediato para comunicar o que seria necessário para dar início ao processo. Houve aqui, nitidamente, desconexão das atividades”, explicou o professor da FEA-USP.
Custódio vê outro indício de demora excessiva na tramitação do convênio. “Da data do empenho do dinheiro, em 9 de outubro, até o encaminhamento para análise da minuta do convênio e emissão do primeiro parecer pela Consultoria Jurídica do Ministério da Integração Nacional, passaram-se 20 dias. Não vejo motivo aparente para tamanha demora.”
O coronel Marcos Antônio Moreira, diretor do Departamento de Minimização de Desastres da Sedec, disse que dinheiro só não caiu nos cofres públicos do Estado porque o governo federal aguarda o restante da documentação do Piauí para fechar a parceria.
“Desde maio estamos nesse trâmite burocrático, porém, necessário. Temos de um lado o direito público e de outro o respeito à legislação vigente. Para que um convênio seja firmado, temos que seguir todos os passos para que o dinheiro seja liberado e, conseqüentemente, bem aplicado. E isso tem seu tempo.” Quanto tempo? “Vai demorar até o Estado conseguir produzir todas as informações que a legislação pede num caso como este”, explicou Moreira.
O coronel minimizou a demora da liberação da verba para o Piauí, afirmando que o Exército restabeleceu o atendimento a 65 municípios em estado de emergência no Piauí, a pedido do próprio Estado, com o último repasse, de R$ 48 milhões, anunciado em 16 de outubro. “Ou seja, mesmo sem o dinheiro do convênio, a população está sendo atendida. Acho que é o que realmente importa”, argumentou.
Enquanto o dinheiro não sai, cerca de R$ 1 milhão já foi desembolsado dos cofres estaduais para suprir a demanda de municípios que precisam de abastecimento de água no Piauí. “Estamos trabalhando em conjunto com o Exército para não deixar que a população sofra ainda mais com as conseqüências da seca. Temos convicção de que o possível está sendo feito, mas a liberação desse convênio melhoraria e muito as condições da operação. Quem sai perdendo mesmo, com esta demora, são as contas do Estado”, explicou o secretário de Defesa Civil do Piauí, Fernando Monteiro.
Até o final da produção desta reportagem, nem o Estado nem o governo federal souberam precisar quando o dinheiro chegaria efetivamente ao Piauí. O processo está na Conjur - Consultoria Jurídica do Ministério da Integração Nacional, que pediu novas retificações ao governo estadual. Estas últimas foram enviadas pelo Estado na quarta-feira (21), e passariam por nova análise em Brasília. Como a chuva já começou e, com isso, a estiagem está próxima do fim, cabe saber se a verba de R$ 2,5 milhões será liberada a tempo de atender sua finalidade.
“As chuvas que começaram a atingir o Estado ainda não são suficientes para abastecer os municípios. Por isso, a operação deve continuar, pelo menos até janeiro. E, caso o dinheiro não seja liberado antes de a chuva efetivamente chegar, justificaremos o investimento em outras melhorias para combater a seca no Estado, como a construção de cisternas e poços”, argumentou Monteiro.
Entretanto, para Max Werner, do Cenad, se o objeto do convênio, que é especificamente o abastecimento de água aos municípios que sofrem com a seca através de carros-pipa, não for mais necessário quando a verba for liberada, o dinheiro deve retornar para o governo federal. “Uma mudança do objeto dentro do convênio é complicada e improvável. Teríamos que entrar em um novo processo administrativo.” Enquanto a burocracia rasteja em círculos, as vítimas da seca continuam a caminhar até 15 quilômetros com um balde na cabeça na esperança de encontrar água.
(UOL Notícias,
Ambiente Brasil, 24/11/2007)