Toca o celular. Discretamente saio da reunião. Do outro lado da linha o pedido de informações sobre uma “invasão indígena” na região de Amambaí. Como estava longe, em outro estado, efetivamente nada tinha a dizer. Mas fiquei profundamente indignado com o que entendo como “manipulação da informação” ou notícia tendenciosa e interesseira, geralmente condicionadas pelos interesses dos donos dos meios de comunicação, grupos políticos e econômicos.
Expliquei educadamente à nobre jornalista que apesar de lamentar não ter informações sobre a questão específica, poderia ajudá-la a entender o processo brutal de confinamento a que estão submetidos os Kaiowá Guarani dessa região do Mato Grosso do Sul, e sobre o direito Constitucional de viverem em paz em seus territórios tradicionais. Disse mais. Que a partir dessa premissa legal, o processo de retorno dos índios aos seus tekoha obedece a um dos preceitos mais elementares da legislação nacional e internacional. Isso posto, o telefone silenciou do outro lado.
As in-versões“Cerca de 50 indígenas, na maioria jovens e mulheres, invadiram na tarde de do dia 15 de novembro, a fazenda Madama no município de Coronel Sapucaia, na fronteira com o Paraguai. Os invasores chegaram fortemente armados, inclusive com armas de longo alcance, abateram e roubaram vários animais e aterrorizaram os funcionários e vizinhos”.(Gazeta News, 17/11/07)
Isso se chama plantar a mentira para semear o terror. Talvez as flechas de longo alcance sejam aquelas que atingem as consciências empedernidas dos detentores do poder econômico na região.
A matéria termina com uma cabal demonstração de racismo e ódio, com o mesmo discurso de que os índios são uns incapazes, sujeitos a manipulações de terceiros. “As suspeitas entre os produtores rurais são de que o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) venha fomentando invasões como esta, dando razão ao deputado estadual Paulo Correa que acusou a entidade de fazer “terrorismo no campo”.
A Direção Nacional do Cimi enviou correspondência ao Presidente da Assembléia Legislativa do MS, ao Dep. Paulo Coorea e ao Secretário de Justiça e Segurança na qual afirmam que “tais informações, além de infundadas e caluniosas, são de uma tremenda irresponsabilidade, pois instigam a violência contra os povos indígenas e seus aliados. Fazem um alerta “Repudiamos veementemente estas acusações, alertando para as possíveis conseqüências de tais calunias, em termos de aumento de violência e negação dos direitos de um povo que hoje tem o maior número de assassinatos, homicídios, suicídios, mortes por fome e desnutrição do país”. A carta termina unindo-se à solidariedade já manifesta pelo bispo de Dourados, por lideranças indígenas, por parlamentares e outros setores da sociedade.
As informações veiculadas pela imprensa escrita e eletrônica com relação a mais essa violência contra a comunidade de Kurusu Ambá, tem quase todos se referido ao fato como “invasão”, “confusão”, desocupação, tiroteio, baseando suas informações nas falas de fazendeiros, pistoleiros, polícia, presidente de sindicato rural, enfim, dos detentores do poder. Quando mencionam alguma informação ou dado fornecido por indígenas, essa se dá na forma de “na versão dos índios”.
Uma vez mais prevalece a força e poder do latifúndio e do agronegocio. A determinação expressa por esses setores é não aguardar a justiça pois essa pode demorar. A ordem é resolver logo, nem que seja na bala, como já aconteceu em janeiro, continua acontecendo em Nhanderu Marangatu, onde recentemente foram encontradas até armas das forças armadas nas mãos de pistoleiros.
Kurusu Ambá é um dos exemplos dessa política. Neste ano já teve duas de suas lideranças assassinadas, quatro presas e agora mais quatro pessoas feridas.
A arma da solidariedadeDo outro lado vemos algumas centenas de pessoas tangidas secularmente pelas sucessivas invasões de seu território, vivendo sobressaltados pela fome, submetidos a uma violência constante, abrigados sob uns pedaços de lona esfarrapados, submetidos à intempérie da chuva e sol. Ali resistem e gritam por pão e justiça. Por direitos e paz.
Como é possível ficar calado e parado diante de um quadro dantesco que nos remete a situações expressas por Picasso e outros artistas sensíveis ao drama de comunidades e populações do planeta?
Felizmente no Brasil e no mundo temos uma ampla rede de solidariedade que de maneira cada vez mais forte grita contra as injustiças, cobra respeito aos direitos humanos e exigem que sejam tratados com dignidade e justiça todos os povos, culturas, comunidades, no mundo inteiro. A Anistia Internacional está realizando uma campanha pelo fim da violência contra os Kaiowá Guarani de Nhaderu Marangatu. Cartas do mundo inteiro estão sendo enviadas às autoridades cobrando medidas imediatas. Certamente esse exemplo servirá de estímulo à solidariedade à comunidade de Kurusu Ambá, novamente jogada à beira da estrada.
(Por Egon Heck,
Cimi MS, 20/11/2007)