Olhando aquela figura miúda, de olhos assustados, escrevendo vagarosamente em um caderno pequeno, não dá pra dizer que ali está um grande guerreiro. Davi Kopenawa Yanomami, cinquenta e poucos anos, quase metade deles dedicados a "olhar homens poderosos nos olhos e dizer-lhes a verdade dos índios".
Sobreviveu ao sarampo quando criança. "Meu tio me levou pro meio do mato, escondido. Os que ficaram na aldeia morreram todos", conta ele, lembrando também das outras doenças e dos sucessivos crimes e massacres cometidos contra seu povo. Pode-se dizer que foi a dor que forjou sua luta. "Aprendi a falar português pra lutar contra os que só querem destruir a nossa cultura e a nossa terra", resume.
Ele recebeu em 1989 o Right Livelihood Award (Nobel alternativo) e em 1999 a Ordem do Rio Branco. Foi o primeiro de sua tribo a deixar o Brasil e visitar a Europa com apoio da Survival International, uma ONG dedicada à proteção de povos indígenas em todo o mundo. No final de outubro último esteve pela terceira vez no velho continente. Na minúscula sala da Survival em Berlim, concedeu a seguinte entrevista:
Ambiente JÁ - Que idade você tem Davi?
Davi Kopenawa Yanomami - Com certeza não sei calcular. Mais ou menos cinquenta e poucos. Já to bastante velho (risos)...
Ambiente JÁ - Essa é a primeira vez que você vem à Europa?
Davi - Essa é a terceira vez desde 1989.
Ambiente JÁ - Tem alguma diferença entre essa e as outras vezes?
Davi - Desde 1989 tenho vindo aqui para buscar apoio político para enfrentar o problema da mineração em nossas terras. Antes eram os garimpeiros que invadiam. Agora, além deles, o governo quer legalizar a mineração na terra indígena.
Ambiente JÁ - Mas essas viagens à Europa ajudaram o povo Yanomami de alguma forma?
Davi - Na primeira viagem a repercussão internacional foi grande e o presidente Fernando Collor (eleito em seguida) mandou tirar todos os garimpeiros. Eles dinamitaram as pistas de pouso clandestinas e demarcaram a nossa terra. Deixaram lá os buracos, só. Depois os garimpeiros voltaram. Ai tiraram de novo. Mas mais uma vez eles voltaram, em um grupo pequeno. Não tanto como antes. Agora o problema é a doença que eles trazem e que nunca sai.
Ambiente JÁ - Que tipo de doença?
Davi - Malária, gripe, sarampo...
Ambiente JÁ - E essa viagem agora, ela tem um objetivo concreto?
Davi - O objetivo é informar e discutir com os políticos daqui o que está acontecendo neste momento no Brasil. O governo, deputados e senadores estão falando de novo em autorizar a exploração das riquezas na terra Yanomami. Principalmente a regulamentação da grande mineração em terras indígenas, proposto no Projeto de Lei do senador Romero Jucá.
Ambiente JÁ - Mas o projeto propõe compensações para os índios...
Davi - Sim, eles prometem um monte de coisas, mas isso a gente já conhece. Eles fazem isso pra gente ficar calado, pra enganar o índio. Eles falam em uma percentagem do que for extraído da terra para nós, mas eu não quero.
Ambiente JÁ - Por que não?
Davi - Porque dinheiro não se come. Dinheiro acaba, e depois que ele for gasto nada vai devolver pra nós a paz e a liberdade que a nossa terra hoje nos dá.
Ambiente JÁ - E o pessoal aqui da Europa, como eles estão reagindo a isso?
Davi - Eles dizem que vão pressionar o governo brasileiro a não aprovar esse projeto de lei.
Ambiente JÁ - Mas você sabe que algumas dessas mineradoras com interesse nas riquezas da terra indígena são daqui da Europa?
Davi - Sim. Por isso que estou pedindo para os governos dos países que estou visitando para assinarem a convenção 169 da OIT. Isso evitaria que as mineradoras daqui de explorar nossa terra como quer o governo brasileiro.
Ambiente JÁ - Qual o tamanho da área de vocês?
Davi - Nossa terra pega um pedaço do Amazonas, entra no estado de Roraima, atravessando a fronteira com a Venezuela. São nove milhões e 900 mil hectares.
Ambiente JÁ - Vocês recebem propostas de empresas para entrar e usar a terra?
Davi - Não. É contra a lei.
Ambiente JÁ - Como é que vem sendo esse enfrentamento com políticos?
Davi - Pois é. Político é duro com o índio. Difícil de ouvir o que nós queremos falar. Mas eu enfrento. Agora, nessa viagem to buscando ajuda pra pressionar os políticos de Boa Vista e do Brasil que querem mudar a lei para explorar a riqueza da nossa terra.
Ambiente JÁ - Teve um episódio recente agora em que você enfrentou o presidente Lula, não foi?
Davi - Eu conheço o presidente Lula pessoalmente. Ele andou comigo nos Estados Unidos. Então eu fui encontrar ele lá no alto rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira. Fui conversar sobre a mineração. E falei pra ele na frente de todo mundo que a mineração não é boa pro índio. Pra quem conhece, a grande mineração só traz sofrimento e coisa ruim pra quem mora no lugar. E pedi pra ele não aprovar o projeto de lei que deixa a mineração entrar na terra indígena. Não só na terra Yanomami. Também na terra Macuxi, Caiapó etc. Todas terras onde tem muita riqueza mineral, onde tem ouro e que as grandes mineradoras querem entrar.
Ambiente JÁ - E o que o presidente respondeu?
Davi - Homem grande, poderoso não fala certas coisas. O que ele tem na cabeça, ele não fala pro índio. Ele fala outra coisa pra acalmar o índio. Diz que vai proteger. A única coisa que ele falou e todo mundo que tava lá ouviu é "olha vocês que estão na aldeia, podem me cobrar", o dever dele, o que ele prometeu.
Ambiente JÁ - E você acredita que dá pra confiar, pra cobrar isso dele depois?
Davi - Eu não confio em nenhum homem grande. Já tenho experiência com homem grande. Ele não é só ele. Tem muita gente por trás. Tem os amigos deles que não deixam ele falar.
Ambiente JÁ - Como você vê a luta da causa indígena hoje no Brasil?
Davi - A coisa continua muito complicada. Quem tá na terra indígena sabe, tá tudo invadido. A nossa terra Yanomami tá mais ou menos protegida, mas tem garimpeiro lá ainda. Agora o que me preocupa mesmo são os políticos de Boa Vista, que apóiam os fazendeiros e as grandes mineradoras que querem invandir a nossa terra.
Ambiente JÁ - Qual a sua visão do futuro?
Davi - Todo homem branco, no Brasil ou no estrangeiro me pergunta do futuro. Eu não sou Deus pra prever certas coisas. Mas eu vejo o futuro muito difícil. Os brancos estão viciados em destruir a natureza. Não conseguem parar, e estão querendo mais a nossa terra. Então, se não tiver o índio guerreiro pra lutar, pra aprender português, não pra andar passeando na cidade, mas pra defender o seu povo no futuro, vai acontecer um problema sério. Vai entrar exército, vai entrar estrada, vai entrar mineradora, vai entrar tudo na terra indígena. É por isso que eu estou na cidade agora, pra defender a terra e o povo que eu amo.
Ambiente JÁ - O que você pensa da cidade?
Davi - Cidade é maluco. Muito barulho, muita poluição. Não tem espaço pra andar tranquilo, pra andar livre. Tem que ter sempre muito cuidado. O mundo do branco é difícil. É outra cultura. No mato é difícil também, mas eu conheço. Eu entro no mato e sumo, tenho toda minha liberdade.
(Por Mariano Senna, Ambiente JÁ, 09/11/2007)