"Mas o fruto mais sólido desta terra parece que será quando se a for povoando de cristãos. Que Deus Nosso Senhor por sua misericórdia tire estes miseráveis das abominações em que estão e a nós outros dê sua graça, para que façamos sua santa vontade"*. O relato é do jesuíta Azpicuelta Navarro, redigido em Porto Seguro no ano de 1555, por conta de uma das inúmeras expedições promovidas pela coroa portuguesa em solo brasileiro. Visto sob a perspectiva dos povos indígenas da atualidade, ele parece mais uma maldição.
Mais de 452 anos depois, a ganância por ouro e diamantes continuam promovendo a morte e a degeneração cultural das tribos. Também a lógica arrogante, aplicada aos nativos descritos acima como "miseráveis abominações", ainda impera, principalmente entre os altos membros do governo brasileiro. A diferença é que nesses séculos os índios aprenderam português para lutar por seus direitos. E na terra dos brancos.
Foi o que fez o líder Davi Kopenawa Yanomami na última quinzena de Outubro. Passou por três países da Europa (Noruega, Inglaterra e Alemanha) com uma mensagem inequívoca: "Não queremos mineração em nossas terras", declarou ele em Berlim (leia entrevista).
A referência é a um velho fantasma que assombra as comunidades tradicionais brasileiras. O Projeto de Lei 1610/96 de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR). Agora, apensado a um projeto do Executivo, o PL tem avançado no Congresso. Os argumentos usados pelos defensores da proposta justificam a preocupação e a luta do líder Yanomami. "A população indígena vai participar também do lucro da atividade comercial", explica o coordenador da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas da Câmara dos Deputados, deputado Eduardo Valverde (PT-RO).
Parece que os parlamentares brasileiros não conhecem o conteúdo da publicação "Progresso Pode Matar" (Progress can kill). Baseada em estudo organizado pela ONG britânica Survival International, ela foi lançada durante a passagem de Davi Kopenawa por Londres. "Tribos que vivem na sua própria terra, controlando seu processo de adaptação em um mundo em transformação, são pobres em termos monetários, mas sua qualidade de vida e saúde é visivelmente melhor que a de seus compatriotas", diz a introdução do estudo.
Em depoimento publicado na conclusão do trabalho, o ilustre Davi complementa o raciocínio. "Não estou dizendo que eu sou contra o progresso. Penso que é muito bom quando os brancos vêm trabalhar conosco, ensinando a ler e escrever, mostrando técnicas de agricultura e uso de plantas medicinais. Isto é progresso para nós. O que nós não queremos são as companhias de mineração e os garimpeiros que só destroem a floresta e trazem tantas doenças, armas, vícios e prostituição. Nós queremos progresso sem destruição".
Mas a reação da representação diplomática brasileira à passagem do líder Yanomami reforça a impressão de descaso com a opinião dos indígenas sobre o assunto. Em Londres a representante brasileira presente durante o lançamento da publicação tentou rebater as críticas ao governo com uma "quase gafe". Defendeu o Estado brasileiro citando a política de combate ao desmatamento. Simultaneamente órgãos do próprio governo "confirmavam o aumento do desmatamento da Amazônia em 2007".
Na capital alemã a reação dos diplomatas foi ainda pior. Após diversas tentativas de obter uma declaração sobre a passagem do líder Yanomami por Berlim, a assessoria de imprensa da embaixada forneceu o telefone de um jornalista encarregado do assunto. Mas todas as tentativas de contato e recados deixados na secretária eletrônica nunca foram retornados.
Nesse caso, o silêncio oficial corrobora para a crença de Davi. "O brasileiro não quer respeitar a terra indígena. Eles querem reduzir a nossa terra. Querem mais terra pra criar boi, pra mineração. Aí não é só terra. São as matas, os bichos, os rios, nossa saúde. Se o Branco mexe na nossa terra, tudo isso sofre, não só a terra. O Brasil tá sobrando só pros branco. Pra nós índios só ilhas, e cada vez menores."
(Por Mariano Senna, Ambiente JÁ, 09/11/2007)
*Reproduzido no livro "A Coroa, a Cruz e a Espada", de Eduardo Bueno (Editora Objetiva, 2006)