Os conflitos fundiários envolvendo unidades de conservação e grupos de remanescentes de quilombolas ganharam um poderoso interventor no sul do país. Desde maio, o Ministério Público Federal (MPF) vem requerindo, entre outras medidas, que a Justiça obrigue o Ibama a não aplicar penalidades aos moradores da comunidade de São Roque, encravada nos Parques Nacionais de Aparados da Serra e Serra Geral, ambos na divisa de Santa Catarina com o Rio Grande do Sul. Na verdade, trata-se da reiteração de um pedido feito em novembro de 2006. “Eles recomendaram, mas nós não cumprimos”, afirmou Deonir Zimmermann, chefe das duas unidades de conservação. “Não podemos deixar de fiscalizar, na medida em que essas pessoas desrespeitem o meio ambiente. Neste momento, por exemplo, estão sendo lavrados mais três autos de infração”, cita.
Neste mês, mais um round desta história deve ser definido. Na região, todos esperam com ansiedade que no dia 20 de novembro saia um relatório conclusivo do Incra que estabelecerá a área a ser titulada para os quilombolas. Mas o instituto mesmo não arrisca uma data. Segundo a assessoria de imprensa do Incra, não há prazos ou garantias de que o relatório vai ficar pronto este ano. Seja como for, o Ibama prometeu lutar até o fim para manter a integridade das unidades de conservação, que juntas estão entre as 10 áreas protegidas mais visitadas do país, apesar do humilde tamanho: 17 mil hectares na Serra Geral e 13 mil hectares em Aparados da Serra. Os quilombolas querem a titulação de aproximadamente nove mil hectares, sendo que 2.400 estão dentro dos parques nacionais. Uma área insignificante, segundo descreveu a ação da procuradora Flavia Rigo Nóbrega
De acordo com os levantamentos antropológicos realizados sob coordenação do professor Ricardo Cid Fernandes, da Universidade Federal de Santa Catarina e concluídos em 2005, existem hoje na região pretendida 26 famílias. Mas a associação que representa os quilombolas tem cadastradas 65. “Não sabemos exatamente o número, pois muitas fugiram da região por causa das enchentes e devido à criação dos parques”, explica Fernandes. “Há indícios da presença de negros fugidos para aquela região desde 1860, mas sem documentos. As pessoas nunca foram indenizadas”, diz o pesquisador.
Dentro da área dos parques, no entanto, há apenas sete grupos. Os outros vivem no entorno ou só utilizam as áreas protegidas para seus cultivos. Segundo Zimmermann, o principal impacto causado pelas famílias é o desmatamento de Mata Atlântica. “Elas derrubam a floresta em estágio secundário de regeneração para fazer seus plantios. São desmatamentos espalhados em fragmentos ao longo do cânion Faxinalzinho”, diz ele. De acordo com a ação do MPF, as roças são de pequena extensão, os residentes só caçam para seu próprio alimento e extraem a madeira derrubada pelo vento.
As comunidades plantam milho, feijão, batatas, hortaliças, bananas, culturas para subsistência. “Eles não seguem a lógica de acumulação de renda. Alguns moradores produzem morangos e cebolas orgânicos e vivem de aposentadorias rurais”, diz Fernandes. “Para eles, aquilo é mais do que suficiente. São territórios de liberdade construídos em meio a cenários de opressão”, explica o professor. Mas, pelo que diz o Ibama, eles já começaram a ter maiores pretensões. “Há um projeto para plantio de cana para produção de açúcar mascavo numa área de 10 hectares e querem que o Ibama autorize essa atividade dentro da área do parque”, conta Zimmermann.
Difícil acesso Os obstáculos naturais são imponentes o bastante para dificultar maiores estragos à natureza. A declividade do terreno, marcado pelos cânions que tanto encantam os visitantes, é um enorme empecilho a quem pretende viver e cultivar ali. Os quilombolas sabem disso, tanto que só querem mesmo produzir numa área de vale, entre cânions, onde passa o rio Faxinalzinho – local que é frequentemente afetado por enchentes, deixando ilhado quem se aventura a permanecer ali. Segundo a administração dos parques, quase toda a área questionada por eles não poderia ter uso, independentemente de estarem ou não dentro de unidades de conservação. São áreas de preservação permanente (APPs), como beira de rios, nascentes, áreas de declividade superior a 45 graus. A área reivindicada no entorno das unidades de conservação são zonas de amortecimento, justamente locais planejados para ampliar Serra Geral e Aparados. “O ideal seria a junção dos dois parques, mas perderíamos essa chance com a demarcação da área quilombola”, lamenta Zimmermann.
Apesar disso, os quilombolas pleiteiam toda essa extensão de terras. “A paisagem tem um valor tradicional. Ela configura um repertório de referências culturais”, diz Fernandes. Para ele, embora não façam uso produtivo em cerca de 90% da área que pedem, os quilombolas pretendem reestabelecer a territorialidade dessas áreas, onde há caminhos e trilhas usadas no passado para fuga de escravos, e hoje viraram percurso de corridas de aventura, por exemplo, ou para visitar parentes do litoral serra acima.
Versões De acordo com o Ibama, boa parte dessas referências ao passado não condiz com o que alguns antigos funcionários dos parques afirmam. “Temos testemunhos de pessoas que visitaram a região na época da criação dos parques e não encontraram nenhuma comunidade quilombola”, diz Zimmermann. Ele diz que as casas, distantes umas das outras, não caracterizam uma comunidade, consolidada apenas após a formação de uma associação. Mas não para a antropologia. “Elaboramos a genealogia de cerca de 160 pessoas, todas com parentesco com escravos de três senhores de terras da região”, explica Fernandes. Segundo ele, a comunidade é caracterizada como quilombola pelo modo de vida, organizado em torno de famílias numerosas, pela produção de subsistência, pela técnica de construção de moradias com taipa, cor da pele e ancestralidade.
Reivindicando qualidades semelhantes, depois que a Fundação Palmares começou a emitir suas certidões de auto reconhecimento de quilombolas, em 2003, diversas associações e comunidades correram atrás do direito de titulação de terras pelo Incra. De acordo com alguns relatos, foi vendo na TV uma reportagem sobre o reconhecimento de um quilombo que uma liderança da comunidade São Roque resolveu chamar seus companheiros a pressionar pela sua certidão, emitida em 2004. Em pouco tempo, pipocaram novas casas no entorno dos parques. Gente que procurou a área atrás da notícia de que ela iria ser demarcada. Dentro das áreas protegidas, no entanto, Zimmermann garante que não tem permitido ampliação ou construção de novas residências.
O Ibama admite que por muitos anos os parques ficaram praticamente abandonados, o que permitiu a ocupação de algumas áreas. Aparados da Serra, por exemplo, foi criado em 1959, depois ampliado em 1972, mas até 1984 não havia nem sinal de implementação, conforme explica Zimmermann. Apenas em 1998 uma guarita foi construída nessa região, que abrange os dois parques, quando também Serra Geral, criado em 1992, começou a ser efetivamente implementado. “Antes, o que existiam eram ações pontuais”, diz o chefe dos parques. Hoje a gestão das duas unidades de conservação é compartilhada. Há um chefe, cinco funcionários, cinco guaritas de monitoramento, controle de acessos e fiscalização, além de uma sede administrativa ligada ao centro de visitantes e três estrutura para hospedagem dos servidores.
Pressões e soluções Atualmente, cerca de 70% da área do Parque Nacional de Aparados da Serra está com situação fundiária regularizada, inclusive a área reivindicada pelos quilombolas. Ao contrário da porção pertencente ao Parque Nacional da Serra Geral, que tem apenas 20% dessa situação resolvida. Com base nesse ponto, o Ibama propôs negociar. Avisa que tem trabalhado para fazer um termo de compromisso para ocupação das propriedades ainda não indenizadas dentro dos parques nacionais. “Vamos procurar os moradores, inclusive os quilombolas, explicar as limitações de uso da propriedade e oficializar tudo que eles podem ou não fazer na área”, diz Zimmermann. A idéia é impor restrições e ao mesmo tempo dar a possibilidade de permanência do uso da área atendendo a legislação ambiental enquanto o local não for indenizado. E sobre isso Fernandes concorda “Infração é infração, a terra ainda não é deles”, reconhece o coordenador do laudo antropológico.
Isso é pouco para convencer o MPF. Durante praticamente toda argumentação da ação civil pública, a promotora Flávia Rigo Nóbrega faz duras críticas ao Ibama por impor restrições às populações residentes nos parques, como proibição de queimadas, impedimento de ampliação de roças, etc, o que, segundo ela, levaram ao arrendamento de áreas a terceiros e abandono das áreas por algumas famílias. Para ela, o Ibama não garantiu sustentabilidade para que o grupo sobrevivesse de maneira digna no local. Por isso exige que o órgão ambiental se abstenha da imposição de multas e penalidades aos integrantes do grupo, salvo casos em que desrespeitem restrições específicas que, segundo a ação são “cultivo em APP, caça de determinadas espécies e pesca com uso de equipamentos proibidos”. Também requer a declaração do direito de propriedade as terras tradicionalmente ocupadas, a realização de levantamento das áreas utilizadas para moradia e cultivo (o que ocorre nesta semana junto com peritos do MPF), inclusão no plano de manejo
As ações gerenciais para disciplinar relações sociais e econômicas do parque com a comunidade. E ainda multa diária de dois mil reais contra o Ibama em caso de descumprimento de algum desses itens.
Segundo Fernandes, a intervenção do Ministério Público serviu até agora para garantir que os quilombolas que têm roças dentro do parque possam mantê-las. “Não foi autorizada ampliação, o que é prudente porque o que se quer é melhorar a produtividade, não a área de produção”, opina. Mas o MPF é mais ousado. Defende que “as famílias que compõem a comunidade, todas bastante humildes, necessitam ampliar a área de plantio nas propriedades que já tradicionalmente ocupam, pena de terem sacrificada a própria sobrevivência”, diz a ação.
Numa tentativa de negociação, Fernandes sugere que os quilombolas poderiam abdicar de algumas áreas pretendidas sim, mas não abrem mão da parte por onde passa o rio Faxinalzinho devido à existência de cemitério, ruínas, moradias e caminhos que conduziam às fazendas subindo a serra. E, como tem sido cada vez mais freqüente em disputas territoriais envolvendo unidades de conservação e quilombolas, antes pressionar pela titulação em uma terra pública do que encarar uma propriedade privada. “A negociação com o Ibama pode ser mais proveitosa do que com produtor de soja”, avalia Fernandes. E azar das unidades de conservação, criadas para garantir recursos naturais a todos, quilombolas ou não.
Até hoje a Justiça de Santa Catarina não julgou o caso. Considerou que, diante do exposto, não só o Ibama, mas os outros proprietários de terras pleiteadas pelos quilombolas deveriam fazer parte da ação porque teriam igualmente direito de defesa de seu patrimônio. Em julho, deu 10 dias para o MPF chamasse os demais envolvidos para participarem do processo. Mas nada aconteceu. Apesar das insistentes ligações, a assessoria de imprensa do MPF informou que não poderia agendar entrevista com a procuradora Flavia Rigo Nóbrega.
(Andreia Fanzeres,
O Eco, 08/11/2007)