Há males que vêm para bem. O recente escândalo da adulteração do leite vai ajudar na modificação do antigo sistema de defesa agropecuária do país. O Brasil merece trabalho melhor.
O modelo atual é sabidamente ineficiente. Vem desde 1934 sua conformação, com as primeiras instruções para a inspeção de carnes, leite e seus derivados. Em 1950 surge a lei básica do sistema, obrigando à inspeção sanitária o processamento alimentar. Nasce o SIF, Sistema de Inspeção Federal.
A base do sistema é a chamada inspeção permanente, aquela exercida por médico veterinário oficial, cujo escritório funciona dentro dos laticínios e frigoríficos. O pressuposto é que, com a presença física, ali, no pátio da agroindústria, o profissional verifica, ao vivo, todo o processo. Exerce assim, diretamente, seu poder de polícia sanitária.
No começo, funcionou bem. Poucas eram as empresas, muitos os fiscais sanitários. Vivia-se a época do Estado-patrão. Precários os métodos de controle, difícil a comunicação, afinal nem fax havia, somente os olhos do veterinário resolviam a parada. Bons anos.
Quanto mais se fortalecia o setor agroindustrial, porém, ganhando escala para atender à urbanização brasileira, a defesa agropecuária encolhia sua eficiência. As empresas, e o mercado, cresciam em tamanho e complexidade. A fiscalização tradicional, aquela do mano-a-mano, não dava mais conta do recado. Nem inchando a máquina estatal.
Problema semelhante inquietara muitos países. A saída exigiu mudança do paradigma sanitário. Ao invés de fiscalizar diretamente, na ponta do consumo, dentro da empresa, a legislação repassou aos próprios empresários a tarefa do controle sanitário. E sacramentou ao governo a função de supervisores, através de auditorias aleatórias.
Riscos sanitários em toda a cadeia produtiva, e não apenas na ponta final, passaram a ser investigados. Essa migração configurou novo método de trabalho, intitulado APPCC, Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle. Coube às empresas adotar o novo sistema. E os governos garantem sua credibilidade.
No Brasil, o corporativismo jamais permitiu tal modernização. Os técnicos preferem manter seu "poder de polícia", a repartir com a iniciativa privada a responsabilidade pela qualidade dos alimentos processados. O discurso atrasado é forte: supondo-se impolutos e onipresentes, argumentam que as parcerias privadas significam uma subversão à estrutura natural do Estado. Parece coisa getulina.
Já surgiu, no governo de FHC, proposta para criar uma Agência de Defesa Sanitária no país. Não vingou. Continua, com alguns aperfeiçoamentos, dominando o paradigma antigo. Resultado: o sistema acabou precário, por culpa não propriamente dos veterinários, mas devido ao modelo ultrapassado de fiscalização.
A política de empurrar a sujeira para debaixo do tapete engana há tempos. Entra e sai Ministro da Agricultura, sem que a poderosa corporação sanitária seja enfrentada. Na gestão do Roberto Rodrigues, desgraçadamente, ressurgiu a febre aftosa, afetando o Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo. Percebeu-se, claramente, que o sistema de defesa agropecuária do país estava em frangalhos.
Agora, rolou o leite derramado. Uma vergonha pública. A fraude dos laticínios prova, definitivamente, que o velho sistema está falido. Virou um faz-de-conta. A isenção na fiscalização, imaginado a partir da presença fixa do profissional dentro da empresa, também suscita dúvidas. Afinal, a fraqueza humana não escolhe lugar.
O assunto lembra, na década de 1970, as auditorias da SUDAM, Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia. Projetos de pecuária bovina, espalhados na selva, somente permitiam acesso via aérea. E os fiscais do governo, a pé, pegavam carona no avião dos empresários para verificar o correto uso do dinheiro público. Os laudos eram, obviamente, favoráveis. Nunca viram a dinheirama desviada.
O tema da fiscalização sanitária é tabu no Brasil. Falta coragem para colocar o dedo na ferida. Tudo se abafa em nome do interesse nacional. Ocorre que, nessa época de árduas negociações internacionais, reconhecer as fraquezas internas pode significar "um tiro no pé". Causa tremedeira por aqui as investigações das missões estrangeiras. Seus duros relatórios fomentam a guerra comercial, entremeada com questões sanitárias, como procedem os malandros irlandeses.
A pecuária leiteira cumpre uma agenda positiva, discutida há dez anos, finalmente estabelecida na Instrução Normativa 51, de 2002. Esta impõe melhorias na cadeia produtiva, desde a ordenha até o resfriamento, agora obrigatório. O bucólico, e mal asseado, latão-de-leite na beira da estrada teve seus dias contados. Ainda bem.
Essa evolução tecnológica abriu as portas do mercado internacional. De grande importador - em 1998 foram cerca de US$ 500 milhões - o Brasil começou a exportar leite e derivados. Em 2006 arrecadou US$ 140 milhões em divisas. Esse bom trabalho levou uma bordoada dos picaretas da soda cáustica.
O SIF está numa encruzilhada. Precisa vencer seu corporativismo e se abrir para as novas tecnologias de controle sanitário. Nesse processo, os serviços estaduais de defesa sanitária, sempre desprezados por Brasília, merecem apoio. E os empresários do setor que arquem com sua responsabilidade. Lição-de-casa, para todos, a cumprir. Na sanidade animal, antes tarde que nunca, chegou a hora da verdade.
(Por Xico Graziano*,
Envolverde / Assessoria, 06/11/2007)