Eles podem representar os primórdios ou o futuro da humanidade. Os freegans -"free" (livre ou grátis) + "vegan" (vegetariano)- valorizam o senso de comunidade e obtêm os meios para sua subsistência principalmente da coleta. Em um momento de grande preocupação com a ameaça aos habitantes do planeta que a mudança climática apresenta, e sendo o estilo de vida dos homens apontado como o grande responsável, a filosofia freegan, que nasceu nos EUA em meados da década de 1990, tem ganhado mais força e adeptos.
"Eu estava com mais ou menos 17 anos quando decidi me recusar a participar desse sistema de grandes corporações que exploram o trabalho alheio, do hábito de consumir por consumir, da extrema competição entre as pessoas. Resolvi não compactuar com o capitalismo", explica Adam Weissman, 29, um dos líderes dos freegans em Nova York. Ao menos uma vez por semana eles se encontram nas ruas da rica Manhattan para conseguir alimentos. E, já que a palavra comprar não faz parte do seu vocabulário, a tática que lhes resta é o chamado "dumpster diving" -um mergulho exploratório no lixo.
MergulhoÀs 21h30 da última quinta-feira, temperatura na casa dos 10º C, um grupo de doze ativistas estava posicionado em frente a uma loja da rede de supermercados D'Agostino na Terceira Avenida. Após os veteranos explicarem aos novatos que não se deve fazer muita bagunça nem atrapalhar o trânsito dos pedestres, todos se atiram aos grandes sacos de lixo transparentes à espera de recolhimento pelo serviço municipal.
Embalagens de verdura, bandejas de morangos, pencas de banana, maços de brócolis, uma caixa de ovos, um vidro de mostarda, potes de iogurte de soja, bandejas de cogumelo shitake. Dos produtos industrializados, quase tudo está com a validade prestes a expirar ou ligeiramente vencida. No caso das frutas, algumas se mostram maduras demais, porém perfeitamente comestíveis. Se não servem mais para a venda no supermercado, cabem nas geladeiras, nos armários e na ideologia nos freegans.
"É absurdo que se desperdice tanta comida enquanto milhões de pessoas no mundo passam fome. O descarte de coisas boas para as substituir rapidamente por itens novos é uma parte abominável da nossa cultura", comenta o mecânico de bicicletas voluntário Quinn Hechtkopf, 24. Ele aderiu ao movimento em fevereiro e, apesar do pouco tempo de prática, exibe bastante habilidade na hora de escolher o que vai levar para casa. Orgulhoso, aponta para a cesta cheia da sua bicicleta: "Divido um apartamento com mais seis pessoas e sou o responsável pela alimentação. O que consigo no lixo é mais do que suficiente para todos nós".
Conteúdos devidamente vasculhados, os sacos são amarrados de novo. A próxima parada é uma lanchonete especializada em bagels, pão salgado no formato de uma rosquinha gigante típico dos EUA. "Jogam fora tudo o que não comercializam no dia", diz Christian Gutierrez, 34, ao abrir um saco repleto deles. Quando indagado sobre o que faz para viver, ele não titubeia: "Sou freegan, ué".
O mergulho no lixo é apenas uma parte da doutrina. Os ativistas utilizam estratégias alternativas para viver, participando o mínimo possível da economia e gastando pouco -o que quer dizer também consertar, reformar, reciclar, trocar, usar meios de transporte não poluentes ou pegar carona, transformar prédios abandonados em lar e trabalhar menos ou adotar o desemprego voluntário. Gutierrez segue à risca.
"Não sofro com estresse nenhum, não preciso me preocupar. Sou verdadeiramente livre." E o lazer? "Pego livros de graça na biblioteca. E achamos muitos CDs e DVDs no lixo." Para ir ao cinema, ele tem uma técnica. "Ou entro pela porta de saída ou então pego um copo de refrigerante e um saco de pipocas usado, abraço minha namorada, finjo que estou falando no celular e vou entrando. Ninguém me pede ingresso. Faço isso várias vezes por semana", conta, arrancando gargalhadas dos demais.
Alguns passantes, curiosos, fazem perguntas e recebem panfletos. Kelly Simon, 23, estudante de antropologia, alerta: "admiro o esforço dos ecologistas, mas não está certo, pois sugerem mudanças dentro do cenário já existente". "Para evitar uma catástrofe ambiental, é necessário ir além e adotar um modelo de vida verdadeiramente simples."
(Por Denise Godoy, de Nova York,
Folha de São Paulo, 04/11/2007)