Celino Cardoso (PSDB) obteve cessão gratuita de terreno na Grande SP; técnicos da própria empresa apontaram irregularidades
Tucano ocupa região há três anos e nega irregularidades; estatal diz que cessão evita invasão e degradações de terreno da Mata Atlântica
O deputado estadual Celino Cardoso (PSDB) utiliza há mais de três anos áreas da Sabesp (companhia de saneamento básico do governo do Estado) para explorar um resort em Mairiporã, na Grande São Paulo.
Ele obteve a cessão dos terrenos às margens da represa Paiva Castro em comodato (tipo de empréstimo gratuito), na gestão do então governador Geraldo Alckmin (PSDB), após ser acusado por fiscais da própria estatal de cometer irregularidades ou ações prejudiciais ao ambiente na região.
Entre elas, a retirada de vegetação e, em parte das áreas da Sabesp do entorno, intervenções sem autorização, como construção de muro de pedras, instalação de plataforma flutuante e rampa para barcos, segundo relatórios internos.
No total, quatro terrenos, que estão em região de Mata Atlântica e de preservação ambiental, foram cedidos pela estatal ao deputado entre 2002 e 2003, somando 40 mil m2 (cerca de 150 quadras de tênis).
Ele usa como atrativo do seu hotel Refúgio Cheiro de Mato, com diárias de R$ 500 por casal, especialmente duas áreas.
Uma delas é contígua à sua propriedade, às margens da represa, que faz parte do sistema Cantareira. Nela Cardoso fez uma estrutura para lazer dos seus hóspedes, com grama, cadeiras, iluminação, rampa para barcos, jet-ski e a formação de uma pequena praia artificial.
A outra fica do lado oposto da represa. Ela serve, conforme consta do site do resort, para permitir "uma chegada cinematográfica" ao estabelecimento. Lá os hóspedes deixam os carros no estacionamento protegido por portão e segurança, dentro do terreno público, e atravessam a água "em um charmoso passeio de barco".
Ao analisar a possibilidade de ceder essa última área, um relatório da Sabesp de 2003 apontava obstáculos. Dizia que ela era de "grande visibilidade ao público externo e moradores locais, havendo a possibilidade de sermos questionados quanto à cessão para fins adversos a um reflorestamento".
Ele citava reunião na qual foi respondido ao deputado que, "por restrições legais e razões técnicas operacionais, não poderia concordar" com a existência de estacionamento. Hoje os veículos do hóspedes do hotel são deixados por lá.
A Sabesp e os órgãos ambientais do Estado dizem que tudo está regularizado. O deputado também nega irregularidades.
"Orientações superiores"
Os comodatos são comuns em áreas às margens da represa da Sabesp. A estatal diz que as regras são iguais para todos que mantêm propriedades no entorno e que a medida visa evitar invasões e degradação. A obrigação dos beneficiários, como Cardoso, é preservar e plantar mudas cedidas pela estatal.
Os pedidos do deputado, porém, tiveram características próprias -a começar pela exploração comercial, que é questionada por alguns advogados. Segundo a Sabesp, existem 15 casos semelhantes.
Além disso, a política de cessão de áreas pela Sabesp estava suspensa em 2000 -mas acabou retomada depois dos primeiros pedidos de Cardoso.
Documentos da Sabesp obtidos pela Folha apontam a resistência de técnicos devido ao fato de ter havido, segundo fiscais, intervenções do deputado "indevidamente" em faixa marginal inserida na legislação de proteção aos mananciais.
Em maio de 2001, um funcionário da estatal, após vistoria, enviou documento a seus chefes dizendo que Cardoso continuava "a mexer" em uma área "sem as devidas autorizações e licenças ambientais".
Ele relata que "não foi aberto relatório de degradação conforme orientações recebidas de nossos superiores" e questiona: "Pergunto qual será a nossa postura ou justificativa quando formos questionados por um desses degradadores os quais temos aberto os relatórios e os denunciado via jurídico [...] ou termos que justificar perante um juiz?"
Sete meses depois, no parecer para a cessão de um dos comodatos, uma advogada da Sabesp escreveu: "Em celebrando [...], a Sabesp estará conivente com as irregularidades promovidas pelo requerente".
Eleito deputado estadual pela primeira vez em 1994, Cardoso foi secretário-chefe da Casa Civil na gestão Mário Covas (PSDB) e ocupou a presidência da Assembléia Legislativa de janeiro a março de 2003.
Alckmin chegou a participar da inauguração do hotel, no final de 2003, segundo Cardoso.
Sabesp nega privilégio
A Sabesp defende as cessões de áreas por comodato realizadas nos anos anteriores e nega ter havido qualquer favorecimento ao deputado estadual Celino Cardoso (PSDB).
A estatal, por meio de sua assessoria de imprensa, enviou nota dizendo que os terrenos cedidos a particulares no entorno da represa do sistema Cantareira seguem "um conjunto de regras que valem para todos", não havendo nenhuma hipótese "de favorecimento nem de discriminação".
Segundo a Sabesp, existem 1.411 processos de cessão de área em regime de comodato no sistema, sendo que 15 "em empreendimentos turísticos ou comerciais", nos mesmos moldes do deputado. Não citou os nomes das empresas ou das pessoas beneficiadas.
A empresa não comentou detalhes de relatórios obtidos pela Folha, que diziam haver irregularidades e citando ordens "superiores" para não formalizar termos de degradação ambiental por parte de Cardoso.
Ela se limitou a dizer que, desde 2000, a área no entorno do hotel já sofreu 28 inspeções -a última das quais em 26 de outubro deste ano, após ser procurada pela reportagem.
A nota diz que "quando constatado algum problema", Cardoso "foi obrigado a saná-lo". "Todas as pendências apontadas por técnicos da Sabesp ao longo dos anos, nessas 28 inspeções, foram corrigidas", diz a estatal, para quem a situação demonstra funcionamento regular e louvável do mecanismo.
A Sabesp defende a cessão de áreas em torno de suas represas sob a justificativa de que é "um esforço de preservação ambiental, uma vez que evita a ocupação desordenada, as invasões e degradações".
Ela afirma que a medida inclusive traz "lucro" para a companhia, porque os proprietários dos terrenos lindeiros são obrigados a fazer controle de erosão, replantio de árvores e ações de vigilância, exigências que foram feitas ao deputado.
A estatal afirma, porém, que em 2007 não houve nenhuma renovação de cessão de áreas em comodato porque ela está "redefinindo a sua orientação".
O ex-governador Geraldo Alckmin foi contatado pela Folha dia 29, mas não respondeu até a noite de terça-feira (30/10).
A Secretaria do Meio Ambiente informou que Cardoso obteve pareceres favoráveis para seu hotel. Disse que, durante uma das fiscalizações, foi constatado um imóvel em área de uso não permitido, tendo sido lavrado um auto de demolição.
Faço tudo dentro da lei, diz tucano
O deputado estadual Celino Cardoso (PSDB) afirma que seguiu os trâmites legais para obter as áreas em comodato, nega ter cometido irregularidades ambientais e diz ser alvo de perseguição política.
Ele declara que, para evitar especulações, já pediu há mais de um ano para a Sabesp estudar um aluguel a ser pago por ele pelas áreas. Diz ainda ter plantado 800 mudas, cedidas por órgãos públicos.
"Para eles é melhor alguém cuidar do que ficar abandonado e alguém tocar fogo, jogar lixo", diz.
"Como eu sou deputado, as pessoas acham que eu fiz não porque é uma coisa normal, mas porque sou deputado", afirma. "Eu nunca fiz nada sem autorização. Faço as coisas 100% dentro da lei", diz.
Cardoso convidou a reportagem para visitar seu resort e apresentar intervenções que fez com preocupação ambiental, como árvores preservadas em meio às edificações. Na ocasião, também mostrou as áreas de comodato cedidas aos imóveis vizinhos.
O deputado diz que "houve um mal-entendido" há cerca de cinco anos, quando um fiscal da Sabesp registrou boletim de ocorrência contra ele por supressão de vegetação.
O caso foi investigado no TJ (Tribunal de Justiça), segundo ele, mas acabou arquivado neste ano.
O fiscal disse que os homens flagrados retirando a mata diante da área do futuro hotel se diziam funcionários de Cardoso, mas um outro funcionário não confirmou. O deputado diz que as pessoas poderiam ser pescadores que freqüentavam a região.
(Por Alencar Izidoro, Folha de São Paulo, 31/10/2007)