Depois de passar silenciosamente pelo Senado, o Projeto de Lei 6424/2005, do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), que propõe alterações no Código Florestal de 1965, ganhou novos atributos na Câmara dos Deputados. Antes focado na permissão do plantio de espécies exóticas para recuperação de áreas degradadas, o texto foi influenciado por setores produtivos, ganhou relatório do deputado Jorge Khoury (DEM-BA) e, segundo ambientalistas, traz agora enorme risco para a Amazônia, o Cerrado e outros biomas brasileiros.
A artilharia contra o projeto de lei, que tramitava na Comissão de Meio Ambiente da Câmara e foi encaminhado pelo presidente da casa Arlindo Chinaglia (PT-SP) à Comissão de Agricultura, ganhou forma em um manifesto assinado por 13 entidades civis. O documento chegou às mãos de parlamentares e burocratas do governo federal.
As críticas se dirigem principalmente à possibilidade de se recuperar 30% da reserva legal na Amazônia, que é de 80%, com vegetais exóticos para produção de biocombustíveis, de se compensar reservas legais fora da bacia hidrográfica de origem e até em territórios de populações tradicionais ou assentamentos rurais, e ainda a possível sobreposição de reservas legais e Áreas de Preservação Permanente (APPs). A maioria das propriedades rurais brasileiras não possui as APPs e reservas legais recomendadas pelo Código Florestal.
Para ambientalistas como Adriana Ramos, do Instituto Socioambiental (ISA), a proposta reduz na prática a reserva legal amazônica para 50%, abre portas para novos desmates e não estimula a real recuperação de áreas desflorestadas no País. Além disso, permitiria que áreas sigam sem florestas, a partir da compensação em outros locais. Assim, a região de Ribeirão Preto e outros pontos do estado de São Paulo com alta produção de cana-de-açúcar, por exemplo, não precisariam recompor sua cobertura vegetal. “Recuperar essas áreas totalmente, ou em parte, é fundamental. Florestas regulam o clima, fornecem água e outros serviços ambientais indispensáveis”, diz.
Sérgio Leitão, diretor de Políticas Públicas do Greenpeace, uma das entidades mais críticas ao PL, observa que o Código Florestal precisa e pode ser melhorado para ir além dos “instrumentos de comando e controle”, mas o texto em debate na Câmara “é muito ruim porque faz concessões absurdas e passa uma péssima sinalização à sociedade frente à emergência das mudanças climáticas, ao desmatamento crescente aliado à retomada dos preços de produtos agrícolas”. “O PL faz concessões ao agronegócio e não explica o que a floresta está ganhando com isso”, afirma.
Segundo Leitão, a tramitação do projeto na Comissão de Agricultura tem apenas um ponto positivo: permitirá que os reais interesses ruralistas aflorem claramente. Para ele, a pressão de usineiros e agropecuaristas será muito forte para fragilizar a legislação ambiental. “Perguntamos ao governo se haveria margem de manobra para cercar o projeto e obter garantias mínimas de proteção ambiental, mas nunca obtivemos resposta. Pelo contrário, o MMA disse que concordava com a compensação fora da bacia hidrográfica e outros pontos do projeto. É um nível absurdo de concessões”, diz Leitão.
O Projeto de Lei também sofreria com a falta de embasamento técnico, pois não haveria um levantamento sobre a situação das reservas legais no País, além de privilegiar os que têm mais dinheiro para compensar desmates com a compra de terras. “O grande defeito [do PL] é privilegiar quem tem recursos para compensação. Quem não tem, não vai compensar, não vai recuperar”, avisa o assessor do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) Nilo D’Avila.
Nada contra Enquanto as ONGs estão de cabelo em pé com a passagem do PL 6424 pela Comissão de Agricultura, o Ministério do Meio Ambiente ameniza possíveis prejuízos ao Código Florestal. Conforme o secretário-executivo do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco, seu ministério não tem estratégia específica para o assunto. “Não temos nenhuma estratégia. O projeto é do legislativo e nosso papel é apenas interagir e trabalhar para que ele garanta e aprimore dispositivos legais em favor do meio ambiente”, minimiza.
Segundo ele, o manifesto ambientalista “não faz o menor sentido” porque as negociações na Câmara estavam avançadas e o projeto de lei trazia pontos positivos, como transformar desmate de reserva legal em crime ambiental e permitir ao Executivo proibir por tempo indeterminado o desmatamento em pontos críticos do território, como municípios da Amazônia. “Não sabemos exatamente qual o texto que chegou à Comissão de Agricultura, mas vários pontos que estavam em discussão eram positivos”, pondera Capobianco.
O posicionamento favorável do MMA a pontos do PL 6424 tem esquentado os ânimos entre governo e ambientalistas. As fagulhas quase provocaram um incêndio no último dia 15 de outubro, durante reunião no escritório do ex-deputado Fábio Feldmann, em São Paulo. Participaram o secretário-executivo João Paulo Capobianco e o diretor de Articulação de Ações para a Amazônia do MMA, André Lima, além de representantes do Greenpeace, WWF, Amigos da Terra e SOS Mata Atlântica, entre outras ONGs. “Dissemos que não nos sentíamos confortáveis com a discussão acelerada e pouco participativa, e que havia muita insegurança sobre vários pontos do projeto. A temperatura esteve acima do mediano”, relata Leitão. Na ocasião, o ambientalista e Capobianco tiveram um acalorado bate-boca.
Entre as entidades ambientalistas de representação nacional, a The Nature Conservancy (TNC) e a SOS Mata Atlântica não assinaram o manifesto crítico ao PL 6424/2005. “Não assinamos porque a SOS acredita que podemos ser mais efetivos e mais coerentes com o processo de diálogo em curso. O fórum legítimo para essa discussão é o parlamento, não entre as entidades ou no Conselho Nacional do Meio Ambiente, mas melhorias são necessárias no texto”, diz o diretor da entidade Mário Mantovani. A SOS Mata Atlântica foi uma as primeiras ongs a se engajarem nos trabalhos da Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso, lançada em fevereiro e já com 308 deputados e senadores.
Para Mantovani, os debates já ocorridos na Câmara foram “abrangentes e qualificados”, envolveram até o setor sucroalcooleiro, e o projeto tem pontos positivos como obrigar a recuperação de áreas degradadas e criminalizar novos desmates em reservas legais. Ele afirma que a compensação em bacias hidrográficas diferentes é um avanço, mas há um racha entre as ONGs sobre a incorporação de APPs nas reservas legais. A compensação de áreas em comunidades tradicionais também é positiva, diz, pois seria uma exceção, não regra. As regiões Sul e Sudeste têm grande nível de degradação de APPs e reservas legais, e poderiam ser beneficiadas pela aprovação do PL 6424/2005, o que levaria à regularização de extensas áreas. “Estávamos valorizando um processo que traria grande ganho para Mata Atlântica, mas caímos no buraco negro da Comissão de Agricultura, com sério risco de retrocesso”, pontua.
Na liderança da Frente Parlamentar Ambientalista, o deputado Sarney Filho (PV-MA) diz que o projeto de lei é “perigoso” e pode passar um sinal à sociedade de que o Congresso está diminuindo a proteção da Amazônia. Segundo ele, o assunto seria melhor tratado ano que vem, sem pressões da CPMF e de escândalos políticos. “Por isso sou radicalmente contra. Acho que o texto vem piorado da Comissão de Agricultura, o que facilitará sua derrubada na Comissão de Meio Ambiente”. Reduzir a proteção ambiental, segundo o deputado, não é o que o Brasil deseja para a Amazônia. “O principal é pensar em um Zoneamento Ecológico-Econômico para toda a região”, argumenta, definindo áreas para exploração econômica e de preservação. Até esta altura de 2007, o Ministério do Meio Ambiente gastou pouco mais de R$ 260 mil (menos de 2,5%) dos R$ 10.720.13 milhões destinados a Zoneamento Ecológico Econômico.
Toma lá, dá cá O embate sobre o Código Florestal também servirá como novo teste para a capacidade de mobilização pública do setor ambiental frente às pressões de uma bancada ruralista que não pára de crescer. No governo Lula, conforme pesquisa do Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc divulgada pela Folha de S. Paulo, o grupo cresceu 58%.
Muitos produtores rurais vêem a reserva legal como problema, pois são impedidos de plantar em toda a propriedade e não há estímulo ao manejo florestal ou incentivos econômicos para que deixem as motosserras desligadas. Ruralistas como a senadora Kátia Abreu (DEM-TO) alegam que apenas o Brasil possui reserva legal, porção florestal obrigatória em propriedades rurais que estaria colocando em desvantagem a agropecuária nacional em relação a seus pares estrangeiros.
Na avaliação de ambientalistas, o Ministério do Meio Ambiente sofreu desgastes políticos em série para ver aprovadas as legislações sobre Gestão de Florestas Públicas, sobre Transgênicos, da Mata Atlântica e a polêmica divisão do Ibama. “O momento era de colocar a casa em dia, não de se discutir Código Florestal. Agora o embate com os ruralistas é mais direto. A possibilidade de êxito é muito pequena”, diz Nilo D´Ávila, do ISPN.
Por isso, a tramitação do PL 6424/2005 está cercada de sombras. Em novembro passado, várias entidades civis denunciaram que a aprovação da Lei da Mata Atlântica aconteceu após um acordo entre governo e ruralistas. Teria sido acertado que a Presidência da República vetaria um artigo para evitar a criação de uma “indústria de indenizações” para proprietários de terras. Em contrapartida, o governo teria prometido rever as regras para reservas legais no País. Lula vetou o polêmico Artigo 46 e a lei foi aprovada.
Na época, o coordenador de Política e Direito Socioambiental do ISA André Lima, hoje diretor de Articulação de Ações para a Amazônia do MMA, declarou em texto veiculado na página da entidade, sobre o suposto acordo, que “preocupa ainda mais por ter ocorrido exatamente uma semana depois do discurso do Presidente Lula atribuindo às leis ambientais a responsabilidade pelo entrave do desenvolvimento do País”.
Fontes ouvidas por O Eco afirmaram que acordo semelhante foi fechado para que a divisão do Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente fosse aprovada no Congresso, em agosto, possibilitando a criação do Instituto Chico Mendes, presidido pelo secretário-executivo do MMA, João Paulo Capobianco.
Adriana Ramos, do ISA, acredita que o MMA está tentando equilibrar tensões para melhorar sua relação com diferentes setores dentro do Congresso, mas errou ao colocar todos os pesos na balança. “É legítimo que [o MMA] vá para a negociação, mas o processo não funcionou. Talvez o ministério não tenha avaliado sua posição dentro do governo”, analisa. Segundo ela, as negociações sobre o projeto estão acontecendo novamente sem que o governo se posicione sobre o tema. “Queremos que o MMA tenha posição mais forte dentro do governo. O Brasil precisa demonstrar liderança na área ambiental, até para obter reflexos positivos em negociações internacionais”.
(Por Aldem Bourscheit,
OEco, 26/10/2007)