Em um artigo na revista científica “Nature” desta semana, o cientista britânico Steve Rayner defende que o Protocolo de Kyoto não só falhou como nunca iria dar certo. Em entrevista exclusiva ao G1, ele vai além. Diz que o acordo climático não ofereceu incentivos para que países como o Brasil poluíssem menos, afirma que assustar o público é uma estratégia burra contra o aquecimento global e polemiza: para ele, George Bush fez mais pelo clima do que qualquer outra pessoa na Terra, porque personificou o vilão a ser combatido.
Diretor do Instituto James Martin, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e professor de Ciência e Civilização, Rayner fez parte do grupo de pesquisadores envolvido com o relatório de fevereiro do IPCC (Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas), da ONU, que afirmou, pela primeira vez, que as elevações na temperatura observadas nas últimas décadas são, sim, causadas pela interferência humana.
Em seu currículo, estão trabalhos tanto como professor de disciplinas ligadas ao meio ambiente quanto à economia. Com uma visão dos dois lados envolvidos na luta pelo meio ambiente ele sugere que a saída contra as mudanças climáticas está na pesquisa científica de novas tecnologias energéticas.
G1 - Em seu artigo na “Nature”, o senhor defende que o Protocolo de Kyoto falhou. Por que acredita nisso? Steve Rayner – Acredito que o principal motivo pelo qual o Protocolo de Kyoto falhou foi porque ele foi montado às pressas, baseado em três diferentes experiências que o precederam. Algo que é perfeitamente natural. Os seres humanos fazem isso o tempo todo. Quando confrontados com uma situação nova, nós nos banhamos em experiências passadas para enfrentá-la.
As três principais coisas que “emprestamos” foram: o regime para controlar os gases CFC, que destroem a camada de ozônio, o programa da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos contra a chuva ácida e o tratado de redução de armas nucleares, onde Rússia e EUA concordaram em reduzir seus arsenais atômicos. Inclusive, e muitas pessoas se esquecem disso, antes de Kyoto, Al Gore era mais conhecido nos Estados Unidos por seu trabalho no controle de armas nucleares.
Retiramos algumas coisas desses três projetos. Do Protocolo de Montreal, que protegia a camada de ozônio, emprestamos a idéia de que poderíamos reduzir as emissões de gases com algumas regras. Do programa contra a chuva ácida, a idéia de que poderíamos ter um mercado de gases de efeito estufa. E do programa de desarmamento nuclear, a idéia de reduções gradativas mutuamente verificáveis.
Mas, é claro, essas analogias eram bastante imperfeitas. Quando falamos da redução de CFCs, estamos falando de um pequeno número de gases artificiais, os clorofluorcabonetos, para os quais havia tecnologia de substituição disponível. Quando falamos do mercado criado para combater a chuva ácida, estamos lidando com um mercado inteiro dentro de um só país, obedecendo as mesmas leis. E quando falamos da redução de armas nucleares, falamos de uma tecnologia que estava completamente sob o controle do governo.
Nada disso é verdade quando falamos da redução de gases do efeito estufa e do Protocolo de Kyoto. E essa é uma das causas porque ele falhou. Nos baseamos em modelos imperfeitos para construir o tratado.
G1 – O senhor mencionou o Protocolo de Montreal, que é considerado um dos acordos internacionais mais bem sucedidos do mundo. Na sua opinião, ele deu certo apenas porque seu problema era mais simples? Ou ele teve algum apoio que faltou a Kyoto? Rayner – O problema de Montreal era muito difícil, mas muito mais simples, nem de longe tão complexo, quanto o de Kyoto. Estávamos lidando com poucos gases artificiais, produzidos por poucas indústrias em poucos países. E havia uma alternativa tecnologicamente viável. Então era realista esperar uma redução gradativa até a não-utilização do gás, que foi o que aconteceu.
Quando o assunto são os gases de efeito estufa a coisa fica bem diferente. Estamos lidando com uma grande quantidade de gases, vindos de uma grande quantidade de fontes. Temos o CO2, da queima de combustível fóssil e do desmatamento, temos o metano e os próprios CFCs e diversos outros gases, para os quais não existem alternativas simples disponíveis. A maior parte do dióxido de carbono liberado na atmosfera vem da queima de combustível fóssil e de madeira, e para muitas pessoas essas são as únicas fontes de energia que elas têm. Elas simplesmente não têm acesso a alternativas limpas.
G1 – No artigo, o senhor menciona que muitas pessoas tendem a culpar as falhas do Protocolo de Kyoto nos países que não o ratificaram, Estados Unidos e Austrália. O senhor não acredita que algo poderia ter sido diferente se os americanos tivessem aderido à iniciativa? Rayner – Não, não acredito que teria sido diferente. Devemos lembrar que os Estados Unidos assinaram o Protocolo de Kyoto, mas que o presidente Clinton não encaminhou o tratado para ser ratificado pelo Senado. Porque ele sabia que não seria ratificado. Não vamos esquecer que Al Gore era vice-presidente nessa época e ele também não pressionou pela ratificação. Quando George Bush assumiu o poder, ele viu algumas vantagens políticas em enviar o cadáver de Kyoto direto para o necrotério, em vez de deixá-lo vagando pela Casa Branca, que é onde Clinton o deixou.
De muitas maneiras, ironicamente, George Bush fez mais para manter o Protocolo de Kyoto vivo do que qualquer outra pessoa na Terra. Ele providenciou o vilão que faltava, em volta do qual muitas pessoas que queriam ações extremas pelo clima se organizaram.
G1 – Mas os Estados Unidos são os maiores poluidores do planeta. Se eles estivessem participando as chances de sucesso do Protocolo não seriam maiores? Rayner - Não acredito que exista qualquer razão para assumir que isso aconteceria. Olhe para o que o resto do mundo fez nesse tempo. O Protocolo de Kyoto estabeleceu a meta de 5% de redução para os países industrializados. Esse objetivo foi reduzido para 2% em termos de metas reais, com a introdução de assuntos como o desmatamento. Nenhum país que assinou o Protocolo de Kyoto está no caminho para, de fato, atingir as suas metas.
Ironicamente, um relatório publicado neste ano mostrou que o Protocolo de Montreal fez mais contra o aquecimento global do que o de Kyoto teria feito mesmo se seus objetivos fossem cumpridos.
Por isso, acredito que mesmo que o Protocolo de Kyoto tivesse sido implementado e suas metas tivessem sido atingidas, estaríamos olhando para reduções de 2% na melhor das hipóteses. Os cientistas nos informam que para estabilizar a atmosfera num ponto suficiente para evitarmos o que se define como mudanças climáticas extremas e perigosas seria necessário uma redução na emissão de gases estufa na ordem de 60% a 80%. Não há nada na estratégia de Kyoto que nos informa como poderíamos ir de um momento em que estamos falhando em reduzir 2% para um momento em que poderemos economicamente e politicamente implementar com sucesso reduções de emissões de 60% a 80%.
Existe a alternativa óbvia de aumentar o preço do carbono para que as tecnologias com combustíveis fósseis se tornem menos competitivas do que as tecnologias que não emitem carbono. Mas o problema é que os preços das tecnologias limpas estão atualmente tão altos que você teria que ter taxas sobre as emissões de carbono tão elevadas que não seriam politicamente aceitáveis.
Sem avançar na pesquisa de tecnologias alternativas para que o preço delas abaixe, você pode taxar tanto quanto quiser a emissão de carbono que tudo que terá será energia cada vez mais cara.
E é por isso que no artigo da “Nature”, Gwyn Prins e eu afirmamos que os países industrializados devem gastar em pesquisa de alternativas energéticas a mesma quantia que gastam em pesquisa militar. Em pesquisa militar, não o gasto total com a guerra. Os Estados Unidos no momento gastam em pesquisa militar algo em torno de US$ 80 bilhões. Em pesquisa energética, gastam US$ 4 bilhões –- e a maior parte disso vai para energia nuclear.
G1 – Os países industrializados criticam o Protocolo de Kyoto por não impor restrições aos países em desenvolvimento, como o Brasil. Como o senhor vê essa questão? É possível combater o aquecimento global sem a participação das nações emergentes? Rayner – Acredito que outra das grande fraquezas do Protocolo de Kyoto é que ele não presta atenção nenhuma em como fazer para que países em rápida industrialização, como Brasil, Índia e China, reduzam suas emissões de gases de efeito estufa. Em parte, é porque ele é incapaz de fazer isso, da maneira como está estruturado.
Mas, novamente, se focarmos na proposta que o professor Prins e eu fazemos, de investir em pesquisa energética, o Brasil, a China e a Índia têm muito a ganhar. E de uma maneira que vai muito além da transferência de tecnologia dos países industrializados. Essa estratégia reconhece que os países em desenvolvimento têm muito a oferecer sozinhos a esse processo de pesquisa.
Para dar um exemplo, se estima que a China tem a capacidade de produzir, com a energia eólica, o equivalente a todo o consumo de energia elétrica dos Estados Unidos em um ano. Se a China decidir seguir por esse caminho, é bastante plausível acreditar que ela se tornaria a principal fornecedora mundial de tecnologia de turbinas eólicas mais baratas.
Acredito que nossas sugestões oferecem oportunidades bastante interessantes para países como China, Brasil e Índia se integrarem aos esforços de combate ao aquecimento global. E Kyoto não oferece qualquer incentivo.
G1 – Há cientistas que defendem que nós já passamos do chamado “ponto sem retorno”, e que não importa o que façamos agora não há como evitar uma mudança climática significativa. Como o senhor encara isso? Em vez de tentar reduzir as emissões de gases, não deveríamos também estar investindo em maneiras de reduzir o impacto da mudança climática? Rayner – Outra parte da estratégia que o professor Prins e eu sugerimos foca exatamente nisso. Precisamos prestar muita atenção em como vamos nos adaptar às mudanças que vão ocorrer. Em parte, porque acreditamos que a emissão histórica de gases de efeito estufa já nos compromete com uma mudança climática significativa. Embora não possamos ainda, de maneira nenhuma, saber qual será esse impacto ou como cada região vai ser afetada.
Infelizmente, durante boa parte dos últimos 15 ou 20 anos, não foi possível sequer tocar no assunto da adaptação ao aquecimento global. Porque as pessoas envolvidas de forma mais aguerrida com a implementação das metas de Kyoto acreditam que se falarmos sobre adaptação as indústrias não vão levar a redução de emissões a sério. É o tipo de pensamento de pessoas que acreditam que se falarmos sobre educação sexual com nossas crianças elas vão ser encorajadas a sair por aí fazendo sexo.
Isso só tem mudado há muito pouco tempo. Só agora estamos podendo falar sobre adaptação de uma maneira que não era possível há 10 ou 15 anos. Mas ainda estamos fazendo muito pouco. E se não gastarmos dinheiro com a adaptação serão as pessoas pobres, em países em desenvolvimento, sem infraestrutura que vão pagar o preço, porque elas são as mais vulneráveis. São elas que sofrerão os primeiros impactos da mudança climática.
G1 – O senhor mencionou no começo da entrevista o ex-presidente americano Al Gore. O documentário de Gore, “Uma verdade inconveniente”, sobre o aquecimento global, foi recentemente proibido de ser usado como material didático na Inglaterra por ser considerado alarmista e conter erros científicos. Como o senhor vê essa polêmica? Rayner – Eu não acho uma idéia terrivelmente inteligente usar argumentos ruins em prol de causas boas. E é algo que tem sido feito muito freqüentemente. Por exemplo, tem se ouvido com bastante freqüência a idéia de que o furacão Katrina foi causado ou intensificado pelo aquecimento global. Um trabalho feito por meu colega Roger Pielke Jr, da Universidade do Colorado, mostra que houve um leve aumento na intensidade de furacões atingindo o sul dos Estados Unidos nos últimos 50 anos, mas 95% do aumento dos gastos ligados aos danos causados pelos furacões vêm da tendência que as pessoas têm de construir infraestruturas caras, como hotéis de luxo, em lugares idiotas, como praias.
Então usar o argumento de que o aumento dos gastos ligados a furacões tem a ver com o aquecimento global não é inteligente. Porque não é um bom argumento. Há diversos bons argumentos sobre a importância de se combater o aquecimento global, mas esse não é um deles.
Sem entrar em detalhes sobre o filme de Al Gore, acredito que, em geral, tentar assustar o público com argumentos ruins é uma estratégia burra, mesmo que por uma boa causa. Porque, em algum momento, as pessoas vão perceber a verdade e então não vão mais se importar. Elas vão se tornar cínicas e céticas quando você tentar usar seus argumentos bons, acreditando que eles não são diferentes dos ruins.
(Por Marília Juste,
G1, 25/10/2007)