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2007-10-24
Na semana passada, uma equipe do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) confrontou-se com uma dura realidade. Deslocou-se de Brasília para as cidades de Cujubim e Itapuã do Oeste, em Rondônia, onde se localiza a Floresta Nacional do Jamari, primeira área de floresta pública do país que será licitada à iniciativa privada para manejo sustentável dos recursos naturais. A idéia era apresentar à população local a minuta do edital e do contrato de concessão de florestas públicas. A concorrência já tem data para acontecer: pelo cronograma do governo, em março do ano que vem serão escolhidas as empresas vencedoras. As reuniões serviam, assim, para tirar dúvidas sobre o processo, colher sugestões e explicar aos moradores como participar dele. Não se tratava de aprovar ou não a proposta, amplamente discutida à época da elaboração da Lei de Gestão de Florestas Públicas. Mas foi um tanto quanto difícil manter a discussão dentro dos eixos.

A população estava mal informada sobre o processo de licitação e sobre o que iria acontecer diante de seus olhos nas audiências. Receberam cópias da lei de gestão de florestas públicas, e outros documentos para embasarem a discussão que, evidentemente, eram complexos demais para serem absorvidos em minutos. Uma equipe do SFB foi aos municípios uma semana antes para divulgar a proposta. Mas não bastou. “É uma pena que estejamos sendo informados disso só agora, pois é um sonho para a gente poder fazer manejo legalmente em uma área da União”, disse o madeireiro João Batista da Silva, que se mudou para Cujubim há seis meses.

Com pouco mais de 13 mil habitantes, quase nenhum asfalto e tráfego intenso de toras, Cujubim é aclamada pela própria população como a capital da madeira. De acordo com Ivan Pereira da Costa, presidente da Cooperativa Extrativista de Madeira e Agroflorestal de Cujubim (Cemac), dos 280 planos de manejo aprovados em Rondônia, 204 estão em seu município. Há 52 serrarias e seis pequenas marcenarias, pilares da economia da cidade, que sobrevive mandando toras para outras municípios, ou no máximo madeira serrada. “A madeira não é plainada, polida ou transformada em móveis aqui. Ela sai com valor agregado muito baixo e aí o município continua pobre, mandando para longe seus recursos”, reconhece o líder da Cemac. Ele garante que nenhum de seus associados explora dentro da floresta nacional. A maior parte dessa madeira é extraída de uma área conhecida como “Soldado da Borracha”, dada pelo Incra há mais de 30 anos. “Nessa área existem 1200 lotes de terras, cada uma com 250 hectares”, diz.

Esse modelo de conceder pequenos lotes para que a comunidade extraia madeira é aquele que a população local está mais acostumada a lidar. Só que não é isso, nem de longe, que o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) propõe.

Manejo em florestas públicas

Em um galpão da Associação de Mulheres de Cujubim e numa escola pública de Itapuã do Oeste, as apresentações do SFB foram literalmente suadas. Muito calor, pouca ventilação e o olhar descrente da população foram comuns nas duas reuniões. Com a honrosa exceção de uma professora de biologia que expôs sua preocupação com a fauna e a flora nas áreas de concessão, todos os comentários e opiniões da população nas duas audiências foram pautados exclusivamente nos ganhos sociais da proposta.

Nesse ambiente, o SFB tentou mostrar que, com rigor contratual e técnico, pretende licitar 96 mil dos 220 mil hectares da Floresta Nacional do Jamari à iniciativa privada por 40 anos. Como reza a Lei de Gestão de Florestas Públicas, três áreas – com 17 mil, 33 mil e 46 mil hectares – serão oferecidas à concorrência para que empresas de diferentes portes tenham chance de manejar os recursos. Isso dá a chance de até cooperativas e associações locais participarem da concorrência, sendo que, se essas últimas ganharem, precisarão virar empresa. O vencedor de uma área não poderá explorar as outras duas e precisará provar que não tem pendências fiscais, econômicas, jurídicas e ambientais. A empresa que quiser concorrer não pode ter multa na dívida ativa ou condenação por crime contra o meio ambiente.

De acordo com o edital, além da madeira, o turismo poderá concorrer, galhos poderão ser explorados para produção de energia, assim como óleos, resinas e frutos, com exceção da castanha e do açaí, por enquanto. “Acatamos a idéia de não licitar áreas usadas por populações tradicionais para coleta de açaí e castanha”, diz Luiz Carlos Joels, diretor do SFB, que recebeu da comunidade de Itapuã do Oeste a sugestão de incluir ainda áreas de coleta de cipó, óleo de copaíba, andiroba entre outros. Importante lembrar que nem por isso o acesso à floresta nacional será descontrolado. Segundo o SFB, ele também precisará ser regulamentado e os extrativistas cadastrados. Ainda pelo edital, é terminantemente proibido o aproveitamento de recursos hídricos, genéticos, minerais, de fauna e pesqueiros na floresta nacional. Assim como titularidade imobiliária e a comercialização de créditos de carbono.

Ganhará a proposta quem tiver o preço mais baixo considerando o menor impacto ambiental, maior benefício social, maior eficiência e maior agregação de valor aos produtos. A proposta técnica envolvendo todos esses critérios terá 60% do peso, sendo que o preço contará 40%. Aos vencedores, o SFB oferecerá plano de manejo da unidade, dados do inventário florestal da região, informações georreferenciadas, imagens de satélite e demarcação prévia da área. O concessionário precisará fazer plano de uso da área, demarcá-la por completo, construir benfeitorias e arcar com os custos do edital (no caso de empresas de médio e grande porte). O SFB se compromete em fiscalizar o cumprimento do contrato com a ajuda do Detex, sistema de detecção de exploração florestal, e a fazer controle de custódia das árvores. Isto é, identificar a tora e o toco para monitorá-los melhor.

Nas três unidades de manejo florestal, o uso dos recursos precisará ser feito em ciclos de 30 anos. O concessionário vai usar 1/30 da área da unidade por ano, além de ter que deixar intactas as áreas de preservação permanente e também não mexer em 5% da unidade. “Ele vai ser responsável por manter a integridade da floresta”, diz Joels.

Deturpação

Encorajados pelo deputado federal Ernandes Amorim (PTB-RO) e sua filha, a deputada estadual Daniela Amorim (PTB), muitos não viram a proposta com bons olhos, porque entenderam que terão empregos preteridos por alguma grande empresa que se instale na região. Embora o SFB tenha enviado ofícios convidando parlamentares estaduais e federais para as audiências, os dois foram os únicos que apareceram, acusando o Serviço Florestal de não ter chamado representantes do governo de Ivo Cassol.

Ernandes, que tem uma carreira invejável na região, apimentou as audiências. Segundo reportagem do Correio Braziliense, foi preso em 2004 acusado pela Polícia Federal de chefiar uma quadrilha que desviava dinheiro público quando foi prefeito da cidade de Ariquemes. Também tem nas costas acusações por grilagem de terras, lavagem de dinheiro oriundo do narcotráfico, extração e comércio ilegal de minério e madeira. De acordo com informações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Amorim teve em 2001 o mandato de senador cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia por abuso de poder político e econômico. Mesmo com esse histórico, sua credibilidade na região é notória. Com ela, fez de tudo para convencer a população a rejeitar a licitação.

Daniela Amorim pediu a palavra para dizer aos moradores de Cujubim e Itapuã do Oeste que, se ainda tivessem dúvidas ou incertezas sobre o que vai acontecer com a floresta nacional, que dissessem não à proposta. Mas quando viu que não dependia deles aceitar ou não a licitação pública, sugeriu que o edital fosse alterado para beneficiar empresas locais na concorrência e mais: “Peço que quem ganhe essa licitação se comprometa a construir colégios, hospitais, infra-estrutura para o nosso município”, disse, arrancando aplausos. Ela, que também já foi prefeita de Ariquemes, sabe que isso cabe à administração pública.

Apesar de ter ouvido repetidas explicações do SFB, o deputado Ernandes Amorim insistiu em discursar, em linguagem clara ao entendimento da maioria, que achava errado licitar “apenas” três áreas, para beneficiar “três pessoas”. E instigou. “Quem tem dinheiro aqui para concorrer com as empresas grandes lá fora? Se alguém de fora comprar, nenhum de vocês vai ter direito de tirar cipó e caçar, nem poder mais entrar na floresta”, disse, como se a caça e a entrada na unidade de conservação já não fossem proibidas. Ignorou a determinação de que a empresa que ganhar será provavelmente a que oferecer mais empregos locais. “É melhor dividir as áreas em 30 parcelas, em vez de três. Beneficiaria mais gente na cidade e daria chance aos pequenos”, sugeriu, sob aplausos da platéia.

A idéia de fazer das unidades de manejo florestal praticamente áreas exclusivas à exploração madeireira foi imediatamente negada pelo SFB. Natalino Silva, veterano engenheiro florestal do SFB, explicou que com base em diversas pesquisas, o tamanho dos lotes não poderia ser reduzido, pois não cumpriria ciclos de produção de maneira sustentável. “Já tentamos fazer isso em áreas menores, em tempos mais curtos na Floresta Nacional do Tajapós (PA) e foi um fracasso. Tirar madeira não é tudo. É uma parte do manejo sustentável”, disse. “Estamos aqui para colher e avaliar sugestões para melhorar o processo. Mas não podemos abrir mão de dois pontos: a floresta tem que continuar em pé e pública”, frisou Joels.

Potencial

Com poucos argumentos sólidos para questionar a proposta de licitação, o deputado então sugeriu mandar para longe a experiência. “Por que não licitar no Amazonas ou no Acre, onde tem mais floresta? Aqui tem luz, tem asfalto. O governo federal precisa é assentar as pessoas aqui”, discursou Ernandes Amorim. “Vocês estão nos trazendo problemas, empresas de fora e essa proposta para a gente engolir de qualquer jeito”, reclamou um vereador de Cujubim.

Joels tentou mostrar que essa licitação era um privilégio para a região, não um problema. Mas na verdade, nem mesmo o governo teve muita opção. A Floresta Nacional do Jamari é a única no país que já tem plano de manejo concluído, definidas assim as áreas destinadas ao manejo e à conservação, por exemplo. Também tem sua situação fundiária regularizada e é bem localizada. Fica na beira da BR-364, que corta o estado de Rondônia, a cerca de 120 quilômetros de Porto Velho.

Os prefeitos de Cujubim e Itapuã do Oeste tentaram acalmar os ânimos e mostrar que a proposta de exploração legal em florestas públicas pode ser muito benéfica aos dois municípios, que receberão porcentagens do governo federal por estarem na área da floresta nacional. No final, o deputado Amorim tentou desqualificar a própria população de seu estado no processo. “Que entendimento têm essas pessoas para discutir esse projeto? Vocês precisam de pessoas para pensar por vocês. E eu digo que isso não está de acordo com o interesse de vocês”, insistiu. Mas quando afirmou que ninguém ali tinha habilidade técnica para fazer um projeto de tal magnitude e concorrer com empresas de fora, mexeu no brio do povo rondoniense. E entregou de bandeja a motivação que faltava para a população se convencer do contrário.

Ivan, da cooperativa, bem lembrou que se na região há tantos planos de manejo, tem que haver por trás deles engenheiros florestais capacitados. E há. A Associação dos Engenheiros Florestais de Rondônia apóia o SFB. E Rita Radmann, profissional do ramo, fez questão de tomar o microfone para dizer que sua classe está à disposição para elaborar bons projetos técnicos e concorrer com qualquer outra empresa brasileira. “Temos mais de 100 engenheiros associados. Podemos representar o estado e o município e trazer um investimento que não é de um dia, nem um ano, nem três anos. Mas de 40 anos”, disse ela.

Osvaldo Pittaluga, superintendente do Ibama em Porto Velho, e Rubens Gomes, representante dos movimentos sociais na Comissão de Gestão de Florestas Públicas, falaram que aquela era a chance de legalizar a exploração em florestas públicas. “No Pará, todos os planos de manejo aprovados nos últimos 10 anos viraram pasto. É necessário se organizar e trabalhar legalmente em terras públicas”, disse Gomes. “Em 40 anos, teremos as florestas garantidas, em vez de usar até acabar e deixar todos desempregados”, disse Pittaluga. Com uma ironia fina, o diretor do SFB resumiu o que realmente vai acontecer. “O futuro é um cavalo que está correndo na frente de vocês. Ou vocês montam nele, ou deixam-no correr para o Amazonas”, finalizou Joels.

(Por Andreia Fanzeres, OEco, 23/10/2007)



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