O tão declamado potencial farmacológico das plantas amazônicas tem muito mais de lenda do que de realidade. E a situação só será revertida com muita pesquisa -e muito dinheiro. É o que defendem os coordenadores de um projeto científico de garimpagem botânica feito na região do rio Negro, no Amazonas.
Apesar de saber que é politicamente incorreto, Antônio Drauzio Varella, médico infectologista e colunista da Folha, percebeu há mais de uma década -quando começou seus trabalhos no local- que contar apenas com a ajuda dos conhecimentos tradicionais só daria problema, na certa.
Interessado em plantas que pudessem lhe render um princípio ativo efetivo contra o câncer ou contra uma doença infecciosa qualquer, Varella, que hoje trabalha ao lado de Riad Younes, contratou um índio como mateiro. Um olhar mais treinado para aqueles tons de verde deveria ser útil.
Não foi bem assim. "Ele identificava apenas plantas que eram usadas em chá. E, ainda por cima, 90% delas só eram boas para o fígado", explica o médico, que na semana passada conseguiu alavancar ainda mais a idéia de fazer plantas amazônicas virarem remédio.
Mas, antes disso, trocou o índio (já faz tempo) por técnicos em botânica -nascidos na Amazônia, mas criados no meio científico de instituições como o Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia).
Além de recursos públicos, Varella, que é pesquisador da Unip (Universidade Paulista), instituição privada, e Younes, diretor do Hospital Sírio-Libanês, conseguiram respaldo nas próprias instituições, algo que os pesquisadores das universidades, por exemplo, não conseguem sempre.
Depois de coletarem, durante todos esses anos, 2.200 extratos aquosos e orgânicos retirados de mais de 600 espécies vegetais, apenas uma visão empresarial pode permitir à dupla sonhar em vender suas patentes para uma multinacional do setor farmacêutico. Segundo Younes, isso não deve acontecer antes de uma década.
Isolamento rápido
A parceria selada na semana passada entre a Unip e o Sírio-Libanês, na prática, vai resultar em um laboratório, que será capaz, a partir de janeiro, de dar velocidade ao isolamento de princípios ativos derivados de plantas da Amazônia. O hospital vai colocar no projeto R$ 600 mil em 2008.
O trabalho, mesmo com recursos, não deixa de ser árduo. De todas as plantas coletadas na região do rio Negro -alguns extratos vieram da mata atlântica paulista- apenas 5% mostraram ser realmente viáveis. E nada pode ser patenteado por enquanto. "Não podemos patentear extratos, apenas o princípio ativo", explica Younes.
O foco farmacológico, neste primeiro momento, nem poderia ser outro. O câncer é o que une as necessidades profissionais tanto do infectologista Varella quanto de uma empresa como o Sírio-Libanês.
No caso da triagem antitumoral, 1.220 extratos foram testados. Destes, 72 apresentaram atividade biológica contra células tumorais humanas.
O segundo foco são as bactérias, que também causam muitos problemas para o homem todos os dias. Também 1.220 extratos já foram testados pela equipe da Unip. Apenas 50 apresentaram algum potencial.
Durante a próxima década, enquanto as coletas continuarem na Amazônia, e a garimpagem química continuar em São Paulo, o debate sobre o potencial da biodiversidade amazônica estará aberto.
E, provavelmente, a lenda ainda estará bem mais forte do que a realidade.
Em termos gerais, Varella, que passou a viver alguma parte de seu tempo no norte do país desde que o projeto começou, tem a receita para proteger a floresta. Investimento em ciência. "Levar alunos e estudantes para lá."
E nada de tentar excluir os estrangeiros desse cenário. "Vocês [jornalistas] gostam muito da palavra biopirataria, mas isso, nesse caso da bioprospecção, não existe."
Para Varella, é impossível que uma multinacional queira levar uma árvore toda para o exterior para depois tentar encontrar onde está aquele princípio ativo tão buscado pelo mundo. No tronco? Nas folhas?
Ele acha que elas só vão entrar após os biogarimpeiros nacionais terem feito a sua parte. A biopirataria amazônica, diz, deve continuar uma lenda.
(
Caderno Mais, Folha de São Paulo, 21/10/2007)