Os novos paradigmas de ação social e intervenção do Estado nas áreas rurais partem de conceitos ainda em experimentação: Territorialidade, sustentabilidade e desenvolvimento. Conseguiremos conviver com processos sociais diferenciados e contraditórios?A incorporação da territorialidade e da sustentabilidade nas políticas públicas brasileiras voltadas para o campo é, hoje em dia, uma realidade. Surgidas durante a década passada, essas noções foram se incorporando progressivamente nas agendas das políticas públicas, notadamente agrícolas e rurais, com uma aceleração marcada a partir da metade do primeiro governo Lula.
Esta realidade revela-se primeiramente pelo fato de que tais noções são adotadas, pelo menos de forma parcial, por um número cada vez mais expressivo de entidades governamentais nos níveis federal, estadual e municipal. Restringindo-se a observação ao nível federal, constata-se que vários ministérios implantaram ou ampliaram, no transcurso dos quatro últimos anos, importantes programas de abrangência nacional ou macrorregional, os quais se referem, de uma forma ou outra, à territorialidade e à sustentabilidade. Citaremos alguns desses programas.
O Programa de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (PDSTR), da Secretaria do Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SDT/MDA), é, sem dúvida, o programa de maior destaque, com o objetivo de melhorar os níveis de qualidade de vida dos agricultores familiares e comunidades agrárias, mediante o apoio às iniciativas dos atores locais organizados. Trata-se de induzir dinâmicas de desenvolvimento econômico e social via projetos empreendidos pelos atores locais. Este programa, fundamentado em acordos de cooperação entre entidades dos territórios e a administração pública, se destaca por conceber o território como um espaço construído em torno de uma “identidade” local – seja ela já afirmada ou ainda por ser construída – e da coesão social, cultural e territorial. A base dos acordos se encontra no Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável, que congrega os elementos do diagnóstico territorial, as visões compartilhadas do futuro pelos atores locais e os projetos coletivos definidos em diferentes áreas: infra-estrutura, capacitação, apoio às associações e cooperativas, apoio às atividades comerciais e cooperação institucional. Assim sendo, o programa, de nível federal, é estruturado em torno da idéia de território construído, apesar de o recorte territorial ser realizado em nível estadual.
No Ministério do Meio Ambiente, destaca-se o Programa de Desenvolvimento Sócio-ambiental da Produção Familiar Rural (Proambiente), implementado a partir da iniciativa dos movimentos sociais e que, depois de 2003, passou a ser um programa de política pública. Esse programa contempla a formação de pólos pioneiros, que são territórios definidos com a preocupação de promover sistemas de produção e atividades adaptados ao entorno ambiental, local com o intuito de melhorar a situação dos agricultores familiares e tornar desnecessária a invasão de novas áreas na Amazônia. Outras iniciativas, tais como o Programa Gestão Ambiental Rural (GESTAR) ou Agenda 21 locais, também fazem fortes referências à territorialidade e particularmente à sustentabilidade ambiental.
No Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), destaca-se o programa de Consórcios Intermunicipais de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local (Consad's), cujo objetivo é fomentar iniciativas na escala supramunicipal na forma de projetos de dinamização econômica, para garantir, localmente, a segurança alimentar. Herdeiro de um programa anterior, os Consad's baseiam-se numa perspectiva de desenvolvimento local, ativada em territórios de ação os quais são delimitados pela administração pública, e na implementação de projetos envolvendo organizações sociais locais.
Num enfoque mais amplo, ou seja, não restrito aos produtores familiares, nem mesmo ao setor agrícola, o Ministério do Desenvolvimento Industrial e Comércio (MDIC) implementou o programa Arranjos Produtivos Locais (APL) para ajudar as pequenas e médias empresas, incluindo evidentemente aquelas do setor agropecuário, para usufruir vantagens de uma localização favorável e empreender processos de desenvolvimento local, com efeitos econômicos positivos para a coletividade.
Ainda mais significativa, é a experiência do Plano Safra Territorial, que vem constituindo uma ponte entre as políticas de crédito para agricultura familiar, as de desenvolvimento territorial e as de segurança alimentar, implementadas por dois ministérios diferentes, MDA e MDS.
A realidade desses programas de desenvolvimento territorial se manifesta ainda pela magnitude da população e da área rural atingidas. Segundo informações dos próprios ministérios, os programas mencionados anteriormente atingem mais da metade dos produtores familiares e mais de um terço do espaço nacional. Infelizmente, os recursos financeiros não seguem o mesmo patamar, o que também explica, às vezes, a modéstia dos resultados gerados por alguns projetos territoriais.
A emergência dessas novas políticas remete em primeiro lugar à evolução do referencial internacional sobre a ação pública, ocorrida durante os anos 1980 e 1990, referentes à redução do papel do Estado, à promoção da descentralização e da subsidiariedade, e à introdução da preocupação da sustentabilidade, que deu lugar a um sem número de experiências em diversos países. Assim sendo, trata-se de políticas ainda novas, caracterizadas por um forte componente de experimentação e aprendizagem. Em nível nacional, e em curto prazo, a promoção das noções de territorialidade e de sustentabilidade nas agendas públicas se justificam pela preocupação de reequilibragem territorial e social, fortemente presente nos dois governos Lula, a qual conforma o bojo do plano plurianual 2004-2007. Neste sentido, a territorialidade é frequentemente concebida como uma estratégia eficiente para incentivar o desenvolvimento econômico e social de regiões menos desenvolvidas. Em longo prazo, este novo enfoque de políticas públicas se insere dentro da dinâmica de revisão do papel do Estado na lógica do fortalecimento do modelo democrático-liberal que vem sendo implementado gradativamente, desde meados dos anos 1980.
Paradoxalmente, a atrelagem entre as noções de desenvolvimento, territorialidade, sustentabilidade e os objetivos de: combate à pobreza rural e de diminuição da desigualdade, pode constituir ao mesmo tempo a força e a fraqueza dos programas de desenvolvimento territorial sustentável no Brasil. A força vem de que a relação entre essas diversas preocupações e objetivos confere a essas políticas uma identidade marcada que as diferencia das demais políticas especificas de índole econômico, social ou ambiental. A fraqueza vem do fato de que a realidade da dita relação é discutível e constitui o temário de reflexões permanentes entre científicos, gestores de políticas públicas e representantes dos órgãos da sociedade civil.
Foi precisamente o que aconteceu na oportunidade do colóquio internacional, celebrado em Florianópolis, nos dias 22, 23 e 25 de agosto passado e dedicado ao Desenvolvimento Territorial Sustentável. Este colóquio, organizado por entidades de pesquisa e ensino superior do Brasil, da França e do Canadá, trouxe à tona alguns dos questionamentos que interpelam quem trabalha com os enfoques da territorialidade e da sustentabilidade. Sem pretensão nenhuma de querer resumir aqui as ricas apresentações e discussões que se realizaram neste evento, sublinharemos alguns dos debates contraditórios que nos parecem muito relevantes na observação das experiências brasileiras.
Um primeiro debate trata da relação entre a territorialidade e a sustentabilidade, notadamente no caso de experiências de desenvolvimento territorial, enfocadas numa perspectiva de desenvolvimento econômico, como é o caso do programa Arranjos Produtivos Localizados, ou, de forma mais geral, dos projetos territoriais de concentração econômica, construídos sobre o modelo dos distritos industriais italianos. Esses projetos territoriais objetivam geralmente dinamizar a economia territorial, utilizando, da melhor forma possível, os recursos locais – existentes ou construídos – para afirmar vantagens comparativas. A referência à sustentabilidade é, em forma geral, usada para caracterizar os efeitos positivos das atividades econômicas, que freqüentemente se limitam aos aspectos sociais (emprego, renda), ampliados pelo fato da economia territorial depender fortemente das relações sociais locais. Contudo, objetivamente, a sustentabilidade pode ser considerada como bastante desconectada das dinâmicas territoriais de desenvolvimento econômico.
O segundo debate é ligado ao papel do Estado nos processos de desenvolvimento territorial sustentável e a sua relação com os atores privados. Duas realidades se opõem. De um lado, atribui-se um papel de destaque ao Estado, encarregado, mediante políticas públicas, de orientar o comportamento dos atores locais (territoriais) para resolver problemas de sociedade. É notadamente o enfoque dos Consad’s. A posição oposta é de quem considera que o desenvolvimento territorial sustentável nasça da preocupação dos atores sociais e constitua o resultado de um projeto coletivo. Neste caso, o Estado é considerado apenas como um ator, até secundário, cujo papel fundamental é de facilitar a ação coletiva.
Uma contradição pode aparecer quando o Estado espera resolver problemas de sociedade através do incentivo de ações coletivas, uma vez que os atores territoriais podem ter objetivos próprios que divergem do imaginado pelo Estado. Esta situação pode ser a do programa PDSTR, no que diz respeito à redução da pobreza e da desigualdade. Contudo, poder-se-ia considerar que se trata de um falso debate, gerado pelo uso da mesma denominação “desenvolvimento territorial sustentável”, para designar dois processos distintos: a territorialização das políticas públicas, de um lado e, de outro, a construção social de território.
O terceiro debate trata do mecanismo do desenvolvimento sustentável. A oposição se dá entre, de um lado, quem concebe a sustentabilidade como uma preocupação dos gestores públicos e dos atores privados, para articular as atividades econômicas dentro de considerações sociais e ambientais e, de outro lado, de quem estima que o desenvolvimento sustentável implica numa redefinição fundamental do modelo produtivo. No primeiro caso, trata-se de melhorar o funcionamento das sociedades capitalistas, trabalhando as interfaces economia-sociedade e economia–meio ambiente, mediante a regulamentação, o melhoramento tecnológico e a “engenharia social”, ou seja, a organização e a mobilização dos diversos segmentos sociais. No segundo caso, estima-se que a sustentabilidade, implica numa revisão dos processos de produção, numa contestação da hegemonia da economia sobre os aspectos sociais e ambientais e na definição de uma economia solidária que permita tomar em conta novos desafios ligados a uma crise sócio-ambiental inédita.
Em guisa de conclusão, cabe sublinhar aqui, que o desafio levantado pela aproximação dos três termos “desenvolvimento” “territorial” “sustentável”, remete a dinâmicas diferentes e até contraditórias, tais como: mudança e conservação, modernidade e tradição, desenvolvimento econômico social e respeito ao meio ambiente. Essas contradições, justificadas pelo novo contexto da elaboração das políticas públicas, incitam a questionar e a renovar a noção atual de desenvolvimento.
(Por Philippe Bonnal,
Agencia Carta Maior, 13/10/2007)
Philippe Bonnal é pesquisador do CIRAD e pesquisador-convidado do CPDA/UFRRJ e do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA).