Habituados a ver as autoridades se valerem do dinheiro do contribuinte para produzir auto-elogios ou manipular a história, os brasileiros têm toda a razão de desconfiar de um livro editado com o selo de Imprensa Oficial. Em geral, é uma indicação de que abrí-lo será uma perda de tempo. Mas de vez em quando essa regra é atropelada por raras e honrosas exceções. Uma delas aparecceu no início de setembro, quando a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo lançou Nos caminhos da biodiversidade paulista. O livro, organizado jornalista Marcelo Leite, colunista da Folha de S. Paulo, é filho dileto de duas pesquisas separadas por exatos 100 anos.
Uma começou em 1996, levada a cabo por três instituições de ensino superiores estaduais, Unesp, Unicamp e USP. Seu objetivo era mapear todos os ecossistemas que um dia existiram em território paulista. A outra – cujos relatórios serviram de guia para a primeira – é fruto dos levantamentos feitos entre 1896 e 1927 por 12 expedições organizadas pela Comissão Geográfica e Geológica (CGG), criada pelo governo estadual para mapear o terreno do estado e avaliar seu potencial de uso. O conteúdo do livro, verdadeira aula de história ambiental, econômica e social em torno ocupação de São Paulo, é surpreendente.
Ele ensina, como lembra Xico Graziano, secretário de meio ambiente do estado, que São Paulo teve um grau de biodiversidade de dimensões amazônicas. Originalmente, as matas cobriam 80% de seu território. E sua variedade era imensa. Começava com os mangues, restingas de seu litoral, que viravam Mata Atlântica de encosta nas escarpas da Serra do Mar, que por sua vez davam nos campos e Mata Atlântica de Planalto na região de Piratininga, confluência de vários rios e trilhas indígenas e onde acabou sendo fundada a atual capital. A sucessão de vegetação de floresta se repetia pelo Vale do Ribeira e nas partes mais baixas da Serra da Mantiqueira, nos cocurutos da qual ainda se achava um outro ecossistema, o de campos de altitude.
Além de tudo isso, havia no Noroeste uma grande massa de Mata Atlântica do interior ocupando uma área equivalente a 1/ 3 de todo o território estadual, cujas fauna e flora só começaram a sucumbir à pressão humana só no início do século XX. No Norte, encostando em Minas, São Paulo tinha Cerrado. E não era pouca coisa. Esse tipo de vegetação, entremeada por manchas florestais, se estendia por 14% da área total do estado. A maior parte disso sumiu. Das diferentes variações de Mata Atlântica, sobraram menos de 6% do que havia. O Cerrado foi dizimado. Dele não resta 1%, espalhado por fragmentos inferiores a 20 hectares. Os manguezais também sofreram nas mãos humanas. Um dia, eles chegaram a ocupar 231 quilômetros quadrados de costa. Hoje, essa extensão foi reduzida em quase 2/3 do seu tamanho original.
Rota do comércio
A grande maioria desses ecossistemas, ao contrário do que aconteceu no Nordeste e no Rio de Janeiro, conseguiu chegar em ótimo estado ao limiar do século XIX. Fora o plantio de cana em São Vicente no século XVI e uma curta experiência com a mesma planta na região de Piracicaba e Jundiaí no XVIII, a agricultura não conseguiu se estabelecer no estado, cuja população se inseriu na economia da colônia como prestadora de serviço de setores exportadores do país. Primeiro formando bandeiras para buscar ouro e aprisionar índios para as lavouras. Depois, quando o volume de ouro dos rios paulistas revelou-se baixo e o comércio de índios mingou, ela funcionou comerciando víveres e ferramentas para as grandes fronteiras do garimpo no Brasil colonial, Mato Grosso e Minas Gerais.
O empreendedorismo paulista desenvolveu a logística mais eficiente e barata para chegar ao interior, onde estavam os garimpeiros. Ela misturava o uso de mulas em trilhas terrestres com navegação em imensas canoas chamadas de batelões pelos rios que corriam em direção ao Paraná, no Oeste. A viagem para Cuiabá, que incluía muitas vezes arrastar as embarcações por terra para fugir de saltos e corredeiras, demorava de quatro a seis meses. Era dureza, mas na época não havia muita opção. O café do Vale do Paraíba monopolizava o mercado exportador. Não havia o menor interesse, do mercado, do governo e dos barões do café fluminense em fazê-lo crescer.
Os paulistas abraçaram o que lhes restava. Trafegar mercadoria não era tão nobre e era menos rentável do que plantar café no Vale do Paraíba. Mas ainda assim, dava para acumular capital suficiente para correr atrás de outras oportunidades. O sucesso comercial atraiu imigrantes. Ao longo do século XVIII, a população da Capitânia pulou de 15 mil para 170 mil pessoas. Claro que isso teve impacto ambiental. Mas ele foi localizado. Os novos habitantes, que não tinham mais do que facões e machados, se estabeleceram ao longo das rotas do ouro, sem qualquer incentivo ou capacidade tecnológica para derrubar a mata. Viviam lá exclusivamente para se beneficiar do comércio.
Por volta de 1800, São Paulo podia não ter o maior PIB do país, mas era riquíssimo de biodiversidade, ostentando quase 82% de sua cobertura florestal original. Cinqüenta anos depois, quando os veios auríferos do interior começaram a se exaurir e o território paulista atraiu novos imigrantes, muito pouco de toda aquela riqueza tinha sido desperdiçada. A capitania ainda detinha 78% das florestas que os portugueses viram quando foram dar no seu litoral no século XVI. Primeiro voltaram os mineiros pelo Norte, e óbvio, se plantaram na área de Cerrado porque seus campos abertos, que não precisavam ser desmatados, eram mais baratos de ocupar. E aí, por conta de um drama ambiental a sorte de São Paulo começou novamente a virar.
Sobras
Depois de meio século de glória, e por causa do hábito dos barões do café fluminenses de pelarem completamente seus terrenos, inclusive encostas, para plantar cafezais, o solo do Vale do Paraíba começou a enfrentar a erosão e a ficar exaurido. Para manter os índices nacionais de produtividade e atender ao crescimento da demanda externa, o café precisava migrar para outras paragens. Com o dinheiro acumulado no comércio para financiar a conversão do solo. São Paulo recebeu o café de braços abertos e o desmatamento na província começou a decolar. Em 1886, as áreas de mata do estado já tinham diminuído outros 10%. A construção de ferrovias para escoar a produção dos cafeicultores acelerou o processo de conversão do solo e a devastação ambiental assumiu contornos selvagens.
Entre a última década do século XIX e 1935, São Paulo perdeu um volume de floresta bem maior do que nos primeiros 350 anos de sua história. Nesse espaço de 45 anos, foram-se mais 44% de suas matas. É nesse contexto que a CGG começa a montar suas expedições para mapear economicamente o território paulista. As primeiras expedições tiveram como objetivo demarcar as terras propícias à expansão agrícola. Nas seguintes, agregou-se a necessidade de fazer levantamentos sobre o subsolo e potencial hídrico dos rios de São Paulo para sustentar também o processo de industrialização. A primeira usina hidrelétrica foi inaugurada em 1901.
O processo do uso dos rios para a geração de energia decolou mesmo na década de 30. Três dezenas de usinas apareceram desde então nos rios paulistas, tirando para sempre da paisagem cachoeiras e saltos como o de Urubupungá. Pedro Cardoso, engenheiro da CGG, ao ver um trem passar carregado de madeira no Oeste paulista, não conseguiu deixar de refletir sobre o que estava acontecendo. “Depois que o trem passou, alçamos nosso olhar e contemplamos todo o horizonte observando o quanto ele é pobre de árvores. Lembramos então dos tempos, que não vão muito longe, quando... fazíamos propaganda contra a devastação das matas e mostrávamos o temor que suas conseqüências nos causavam no futuro”, escreveu Cardoso num relatório em 1927.
“Estas vieram mais rápido do que esperávamos em todo o estado”, continuou. “Os nossos rios estão minguando, as estiagens causando prejuízo, a terra ressequindo e nossas famosas e opulentas matas virgens estão desaparecendo”. Apesar do alerta de Cardoso, o desmatamento prosseguiu. Na década de 70, São Paulo não tinha mais quase nada para derrubar. A sua vegetação original estava restrita ao litoral, principalmente nas escarpas da Serra do Mar, e nos cocurutos de morros e montanhas paulistas de relevo imprestável para o uso humano.
(Por Manoel Francisco Brito,
OEco, 15/10/2007)