A indústria sucroalcooleira, que assumiu a tarefa mundial de curar o planeta do 'vício do petróleo', continua a avançar rumo ao Norte. Nascida no planalto paulista e no Nordeste brasileiro, a cultura da cana já encontra fôlego para levar seus tentáculos para além da fronteira agrícola, no coração da maior floresta do mundo, a Amazônica. O plantio de cana para produção de açúcar e álcool, apesar de ainda modesto, recorre ao desmatamento e às queimadas e usa 65% da força manual para a colheita.
A cana desafia a Amazônia. Mais do que isso, a ousadia humana já encontrou formas de driblar a hostilidade do ambiente. Somado ao ciclo de prosperidade do álcool combustível no Brasil e no mundo, tem não só ressuscitado projetos do Proálcool como atraído dinheiro para novas usinas, tanto na gigante Amazônia Legal quanto na frágil e exuberante área do bioma amazônico, região que cobre cerca de 4% do planeta e de onde se conhece apenas 50% das espécies que ali vivem.
O tema é a mais nova batalha entre os integrantes do governo Lula. A definição de um zoneamento agroecológico que indique vocações no País no próximo ano pôs em choque o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. A pasta da Agricultura admite a produção de cana-de-açúcar em escala na Região Amazônica. A ministra reagiu e parece disposta a não ceder.
A velocidade dos investimentos em produção de cana e derivados na região está longe de ser equivalente aos programados para o Centro-Sul do Brasil, área que até o final do primeiro biênio da próxima década deverá receber US$ 17 bilhões, o suficiente para erguer 90 usinas de etanol.
Além de projetos no norte de Mato Grosso, a Região Amazônica tem planos de produção de álcool no Acre (que pode começar a operar em 2008 e alcançar 3 milhões de toneladas) e no Pará. Há dois novos projetos previstos para Roraima. Mas a prova de que a Amazônia, apesar de tudo, tem condições de produzir cana está em Presidente Figueiredo, 100 quilômetros ao norte de Manaus, localizada às margens da BR-174, que liga a capital do Amazonas a Boa Vista, capital de Roraima. A estrada, de piso novo, corta a mata fechada. O clima é úmido ao extremo, em alguns momentos acima de 80%.
A chuva é freqüente, principalmente a partir de agora. Mas quis a natureza que o céu desaguasse mais a partir de agosto. 'Este ano choveu demais. Os canaviais ficaram encharcados, não havia como colher. Teve dia que a usina ficou parada', diz Waltair Prata Carvalho, superintendente da Agropecuária Jayoro, em Presidente Figueiredo. Em toda a Amazônia, é o projeto que mais desafia o ambiente. E, apesar das apostas de que é um projeto inviável, tem conseguido sobreviver.
A reportagem do Estado esteve na área, uma imensidão de 59 mil hectares, 4 mil deles cobertos com cerca de 8 variedades de cana mais adaptadas às condições. 'Apesar de todas as dificuldades de se produzir cana na região, o projeto sobrevive, já encontrou o equilíbrio econômico-financeiro e precisa somente ampliar a escala para alcançar rentabilidade', assegura Carvalho.
A Jayoro é a parceira da Coca-Cola e só está de pé graças a um acordo assinado pelos controladores e a multinacional, em 1996. Todo o açúcar usado pela Recofarma, a indústria responsável pela produção da base da Coca-Cola, localizada em Manaus, sai da cana produzida naquelas glebas. Sai de lá também todo o extrato de guaraná que a companhia utiliza para a produção do refrigerante Kuat.
A Jayoro é a maior agroindústria do Amazonas. Emprega, neste momento, período de safra, 900 trabalhadores, tanto na usina quanto na colheita manual e mecânica da cana. A Jayoro tem cinco colhedoras de cana que rasgam os canaviais às margens da imensidão da floresta. 'Já vi onça, veado, todo o tipo de bicho nesse canavial', diz Osvaldino Santos de Oliveira, o operador de uma das máquinas há oito safras.
Criada no final da década de 70, a agroindústria surgiu no Proálcool. Tinha uma missão: levar o novo combustível para Manaus. O desconhecimento do ambiente, os custos elevados de manutenção e o declínio do programa no fim da década de 80 transformaram a Jayoro numa mera produtora de cachaça. O novo ciclo do etanol, referendado agora pelo mundo, reacendeu expectativas e pode, em pouco tempo, fazer a Jayoro elevar em mais de 50% a capacidade de produção, de 300 mil toneladas por ano para 450 mil.
'Não vamos derrubar uma árvore. Toda a produção de cana até agora ocorreu rigorosamente no mesmo espaço desmatado na década de 70. E assim continuará a ser', garante Arislando Prado, diretor da empresa contratada pela família Magid (controladora do projeto) para gerir o negócio.
A polêmica entre a ministra Marina Silva e seu colega Reinhold Stephanes reverberou na floresta. 'Essa discussão nos preocupa. Não podem proibir o plantio de cana aqui. Não vamos tomar nenhuma decisão sobre expansão sem saber o que o governo vai decidir sobre a cana na Amazônia', explica Prado.
Uma área de 2,6 mil hectares, no limite da imensa gleba da Jayoro, pode se tornar uma opção para o plano de expansão. Ali, um pasto degradado descansa sob os olhos da Amazônia. Como no resto do País, é uma área candidata a se tornar um canavial, apesar de o endereço ser 'bioma amazônico'.
(Por Agnaldo Brito,
Observatório do Clima/ O Estado de S.Paulo, 09/10/2007)