Não dá para o povo da floresta reduzir o desmatamento e o povo da cidade continuar usando os seus carrões. Essa é a observação que faz o secretário-geral do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), Adilson Vieira, ao falar da redução do aquecimento global, para o qual o desmatamento, no Brasil, contribui com cerca de 70% das emissões nacionais de gases de efeito estufa.
Em entrevista que concedeu à Verena Glass, da revista Carta Maior, o dirigente do GTA destaca que os povos da floresta, que menos contribuem para o aquecimento global, são os que mais sofrem com o problema. Ele lembrou a seca que em 2005 atingiu a Amazônia. “Os indígenas, os ribeirinhos, que em toda sua vida não contribuíram com uma tonelada de CO2 para o aquecimento global, ficaram isolados, sem água, sem poder se transportar. Estas pessoas são as vítimas deste modelo de consumo adotado pela cidade”, assinala Vieira.
Para o dirigente do GTA, essa é uma equação que tem que mudar. “Queremos discutir uma política nacional de proteção das florestas. O Brasil precisa caminhar para uma taxa de desmatamento muito menor, apesar da redução que tem ocorrido. Queremos que se caminhe para o desmatamento zero mesmo”, diz o dirigente da organização, que lidera, junto com o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônica Brasileira (Coiab), a Aliança dos Povos das Florestas. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista de Adilson Vieira.
Desde o primeiro Encontro Nacional dos Povos da Floresta, ocorrido há 20 anos ainda sob o impacto do assassinato de Chico Mendes, e que criou a histórica Aliança dos Povos da Floresta, o que mudou para as comunidades tradicionais da Amazônia?
Muita coisa mudou. Nestes últimos 20 anos, o grande avanço foi a conquista de espaço político dos povos da floresta na sociedade brasileira. É bom sempre lembrar que há 20 anos estes povos eram vistos como parte do folclore brasileiro. Seringueiro, índio, castanheiro, eram figuras folclóricas. Desde o primeiro encontro dos Povos da Floresta essas figuras folclóricas se tornaram atores sociais. Você tem hoje uma série de reservas extrativistas, conquistamos unidades de conservação, terras indígenas, que advém de uma luta, de um posicionamento no espaço político brasileiro. Essa foi a maior conquista que tivemos.
Apesar do reconhecimento e do atendimento de muitas reivindicações dos movimentos sociais da Amazônia, no momento há muito descontentamento com alguns projetos infraestruturais do governo na região. Como a Articulação dos Povos da Floresta está avaliando esta questão?
É justamente por isso que estamos realizando este segundo encontro. No primeiro também tínhamos estes problemas, grandes estradas planejadas, ação de grandes madeireiras, principalmente as asiáticas, barragens, como a usina de Tucuruí, mas na época a gente era bastante invisível. Hoje temos uma outra discussão sobre as grandes obras na Amazônia. Algumas destas obras, nós não somos contra. Outras, nós somos. A [rodovia] BR-163 [que liga Santarém a Cuiabá], nós somos a favor desde que haja governança e investimentos, nós não somos contra o crescimento do Brasil. Mas queremos participar deste crescimento. Por exemplo, nós somos contra as hidrelétricas do Madeira, embora entendamos que o Brasil precise de energia. Mas ao invés de construir grandes hidrelétricas, há que se pensar que é preciso colocar primeiro comunidades da floresta, que parecem estar no século 18 e não têm energia, no século 21, mas através de uma série de alternativas energéticas, energia que você pode estar gerando localmente. Temos um monte de crianças que não recebem vacinação porque na comunidade não tem energia pra conservar. Essas questões básicas ainda precisam ser resolvidos. Pode ser interessante ter um Programa de Aceleração do Crescimento no Brasil, mas nós queremos ser parte deste crescimento. Não basta pensar só em grandes obras para o crescimento econômico dos grandes centros, e nós continuarmos na nossa miséria. Queremos colocar uma divisória: BR163 somos a favor, da forma como vem sendo construída com a participação de toda a sociedade. Usinas do Madeira somos contra. Da forma como estão concebendo as hidrelétricas para nós não serve.
Atualmente, o aquecimento global é um dos temas mais urgentes do debate global sobre o futuro do planeta, e está provado que o desmatamento é responsável por cerca de 70% da contribuição brasileira para o problema. Neste contexto, o controle do desmatamento da Amazônia é um grande desafio para o governo e a sociedade brasileira. Como as comunidades da floresta tem tratado o tema?
Os povos da floresta que menos contribuem para o aquecimento global são os que mais sofrem com o problema. Vimos isto na seca que atingiu a Amazônia em 2005. Os indígenas, os ribeirinhos, que em toda sua vida não contribuíram com uma tonelada de CO2 para o aquecimento global, ficaram isolados, sem água, sem poder se transportar. Estas pessoas são as vítimas deste modelo de consumo adotado pela cidade. Essa é uma equação que tem que mudar. Queremos discutir uma política nacional de proteção das florestas. O Brasil precisa caminhar para uma taxa de desmatamento muito menor, apesar da redução que tem ocorrido. Queremos que se caminhe para o desmatamento zero mesmo. Mas também temos que discutir com o povo da cidade uma mudança em seu padrão de consumo. Não dá para nós, da floresta, fazermos a nossa parte, reduzindo o desmatamento, e na cidade o pessoal continuar com seus carrões. A cidade brasileira também tem que fazer a sua parte.
A preservação ambiental tem sido tratada cada vez mais como um serviço essencial para o planeta. Como vê o debate sobre a compensação financeira por este serviço?
Esta é uma proposta dos movimentos sociais da Amazônia. Há seis anos, por exemplo, propusemos a criação de um programa chamado Pró-ambiente. São incentivos econômicos por serviços ambientais. Assim como os usineiros recebem incentivos para produzir álcool, uma série de indústrias poluidoras recebem subsídios, nós também queremos ser subsidiados, porque a nossa produção é sustentável. Nós precisamos ser compensados de alguma forma pelo serviço que a gente presta. Pode ser em forma de rebate nos créditos ou mesmo em forma de pagamento de serviço ambiental. Não é possível que nós, que protegemos tanto, que as vezes passamos por dificuldades para proteger o meio ambiente, não recebemos nada por isso. Essa é uma discussão que a sociedade tem que enfrentar. Se você quer usar o seu carrão a diesel que produz um monte de emissões, mas quer que a gente diminua o nosso desmatamento, é preciso algum tipo de compensação. Nós precisamos de algum tipo de compensação pelo serviço que prestamos.
A urgência do debate ambiental e da visibilização das questões discutidas pelas populações tradicionais da Amazônia foram elementos importantes na decisão de propor que o próximo Fórum Social Mundial (FSM), que ocorrerá em janeiro de 2009, seja em Belém do Pará?
A questão ambiental é algo que ninguém mais ignora. Mas realizar o FSM na Amazônia será colocar a maior floresta tropical do planeta ainda preservada, uma região multiétnica e multicultural, no debate mundial. Os povos da Amazônia têm muito a contribuir com as lutas dos movimentos sociais do mundo. A gente pode mostrar, por exemplo, a nossa experiência de gestão de territórios por comunidades tradicionais, como as Reservas Extrativistas (Resex) e os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDSs), experiências totalmente amazônicas que já estão sendo exportadas para outras regiões.
Depois da última edição do FSM, em Nairobi, Quênia, em janeiro deste ano, alguns participantes avaliaram que é preciso rediscutir os rumos do Fórum em função de um suposto esfriamento do processo. Como avalia a questão e como acha que o FSM na Amazônia pode fortalecer o movimento altermundista?
Não acho que houve esfriamento do processo FSM. Cada região do mundo contribuiu para o seu crescimento, Porto Alegre [em 2001, 2002, 2003 e 2005], a Índia [2005] etc, e a Amazônia será uma outra experiência. O Fórum de Nairobi foi muito importante para dar peso a algumas lutas na África que ainda estavam invisíveis. Então eu acredito que o Fórum na Amazônia terá este sentido, nós vamos contribuir com o movimento altermundista como as outras sedes.
Temos quase um ano e meio até o FSM 2009. Como se dará o processo de mobilização na região amazônica até lá?
Há um processo sendo construído, estamos montando vários comitês e grupos de trabalho temático. Queremos fazer um Fórum bem amplo e plural, queremos trabalhar as atividades dos movimentos da Amazônia como se fossem um pré-Fórum, como este segundo Encontro dos Povos da Floresta. O certo é que estamos negociando com os movimentos que todos os eventos sejam preparatórios para 2009. No dia 26 de janeiro de 2008, será dia global de mobilização do FSM no ano que vem. Haverá atividades em Manaus, Belém e em outras cidades da bacia amazônica, não só no Brasil, para nos prepararmos para Belém em 2009.
Nas edições do FSM até aqui houve uma certa dificuldade das populações da Amazônia em participar, não? Uma alternativa a isso foram as três edições do Fórum Social Panamazônico, ocorridas em Belém, Manaus e Ciudad Guaiana, na Venezuela. Pretendem utilizar essa experiência na construção do FSM 2009, principalmente para viabilizar a participação dos amazônidas?
Vamos tentar seguir no FSM a metodologia construída pelo Fórum Social Panamazônico, como organizar caravanas de ônibus e pelos rios para trazer os participantes. Queremos uma metodologia bem participativa, de forma que os povos que não tinham como ir a Porto Alegre, por uma questão financeira mesmo, que a gente aproveite para trazer todos os grupos indígenas e demais povos tradicionais de forma bem massiva. Não um, mas cem Tikuna, não dois, mas duzentos Yanomami. A edição de 2009 vai ser a oportunidade para muitas de nossas lideranças participarem de um Fórum Social Mundial.
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Kaxi, 09/10/2007)