Diferenças sociais são problema tão grave quanto o aumento do CO2, diz especialista gaúcho
impactos mudança climática br
2007-10-08
No próximo dia 11 de outubro acontece a cerimônia oficial de posse dos titulares e suplentes do Fórum Gaúcho de Mudanças Climáticas. Representando a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na nova instituição, o pesquisador Jefferson Cardia Simões, glaiciologista e docente do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da UFRGS, acredita que o primeiro passo do Estado deverá ser integrar-se a ações já desenvolvidas nacionalmente nesta área. O professor, que é PhD em Glaciologia pelo Scott Polar Research Institute (SPRI) da Universidade de Cambridge (Inglaterra) e trabalha com variabilidade climática ao longo dos últimos dois mil anos, pesquisando para o Programa Antártico Brasileiro, acredita que o Rio Grande do Sul precisa começar a trabalhar o mais rápido possível para estabelecer bases de dados sobre suas condições de variabilidade climática. Considera que, ao lado da pesquisa científica, a questão das mudanças de valores e de padrões de consumo são fundamentais para atacar o problema das mudanças climáticas. Ele concedeu a seguinte entrevista ao Ambiente JÁ.
AmbienteJÁ – O Fórum Gaúcho de Mudanças Climáticas foi criado em junho, por decreto do governo do Estado, e hoje está nomeando seus representantes. Mas o tema ainda está bem distante da sociedade, do dia-a-dia das pessoas. Como vai se dar o processo de trazer o conhecimento sobre mudanças climáticas à população do Rio Grande do Sul?
Simões – A questão que estamos colocando é a seguinte: o Rio Grande do Sul, infelizmente, está um pouquinho atrasado em ações sobre a questão da mudança do clima. Quando foi sugerida esta idéia de fórum, que estamos apoiando há uns dois ou três anos, é exatamente no sentido de uma participação mais ativa em ações já existentes no Brasil. Desde situar a comunidade toda, não somente a comunidade científica, mas principalmente a área produtiva, que depende extremamente das condições climáticas presentes, independente de haver variabilidade natural ou artificial a mudanças, de saber a situação e ter um trabalho coordenado. Porque hoje nós temos muitas ações de indivíduos e também de grupos, grupos estatais e privados, mas que muitas vezes não se comunicam entre si. Existe uma ação específica para previsão climática até dois, três meses, principalmente com o apoio do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Então nós vamos trazer esta questão mais para o ponto de vista estratégico. Ou seja: dada a situação de cenários proposta pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas para o futuro do clima do planeta; dada uma série de compromissos assumidos pelo Brasil na questão do clima, desde a época da Rio 92; e dado que esses dois têm conseqüências socioeconômicas para o Estado do Rio Grande do Sul, em particular, como o governo vai se posicionar?
AmbienteJÁ – O Sr. acredita que o conhecimento nesta área, em nível de grande público, é suficiente e adequado para levar a ações eficientes na área das mudanças climáticas?
Simões – O conhecimento está aí, está disponível, nos meios de comunicação, Internet etc. Mas nós temos que, principalmente, melhorar o nosso conhecimento do ambiente gaúcho, sobre a variabilidade natural do clima gaúcho e, em cima disso, trabalhar com cenários.
AmbienteJÁ – As universidades já têm esses estudos? Faltaria apenas sistematizá-los?
Simões – Falta uma sistematização. A gestão dessa informação existe. Muitas vezes nós não temos é conhecimento básico. Por exemplo, da variabilidade climática do Rio Grande do Sul em termos espaciais. Nós temos esparsas estações meteorológicas, algumas com cem anos de dados, com um bom desenvolvimento de dados na primeira metade do século 20, mas, depois, não houve uma continuidade, e tem que haver uma continuidade. O trabalho tem que ser, antes de tudo, institucional, não individual.
AmbienteJÁ – As universidades deveriam criar uma ação comum?
Simões – Eu não diria isso. Eu diria, se fosse o caso das universidades, uma ação comum ente pesquisadores de diferentes universidades gaúchas que trabalham na mesma área. E a elaboração de quadros. Por exemplo, qual o status atual do clima gaúcho: O que sabemos da variabilidade climática gaúcha e do seu entorno, nos últimos 200 ou 300 anos, sobre este quadro, o que e quanto foi natural, evidentemente. Podemos então fazer a pergunta: Se podemos saber como o clima do Rio Grande do Sul se comportou ao longo dos últimos 200, 300 anos, vamos agora ver o que os cenários poderiam nos aprontar.
AmbienteJÁ – Que especialidades profissionais são necessárias a este tipo de trabalho?
Simões – Tem que ter uma visão intra e multidisciplinar, das biociências, geociências, climatologia, geografia, engenharia ambiental, ciências naturais como um todo. Também um processo importantíssimo: química da atmosfera. Química da atmosfera está muito pouco desenvolvida no Estado do Rio Grande do Sul, e os processos de mudanças climáticas são química atmosférica, ou seja, uma rápida mudança, pelo homem, da química na atmosfera. Então nós temos que entender melhor isso. Quer ver outro exemplo? Temos que explorar mais as teleconexões porque nós não podemos achar que processos globais são regionais. Nós somos afetados por alguns fenômenos naturais, como os eventos El Niño, que ocorrem a milhares de quilômetros aqui, na superfície do planeta, mas não afetam o nosso cotidiano. É isso que nós temos que perguntar. O que os cenários, os modelos do clima, indicam para o Estado do Rio Grande do Sul? Primeiro, dado o conhecimento global, nessa latitude em que nós estamos, numa latitude muito dinâmica em termos climáticos. E aí, em cima disto, poderemos fazer a pergunta: E daí, qual é o cenário? Quais são as conseqüências?
AmbienteJÁ – E a pergunta: O que fazer?
Simões – O que fazer é o último passo.
AmbienteJÁ – Quanto tempo vai demorar, na sua avaliação, para ter essa reunião de conhecimentos, essa avaliação, a elaboração do cenário e a projeção das possíveis conseqüências?
Simões – É um processo longo, de cinco a dez anos. Então, é importante saber o seguinte: ao contrário do que possa passar às vezes a mídia ou filmes catastróficos, os processos de mudanças globais são processos lentos na escala de tempo e direção. Nós estamos falando em coisas que vão afetar daqui a dez, 20, 30, 40 anos ou mesmo as próximas duas, três gerações. Não é um processo para amanhã. É errado isso, eu tenho alertado muito a imprensa porque nós não podemos ter uma reação do leigo, como "Bom, o mundo não acabou hoje, então é sinal de que era tudo mentira". Nem um, nem outro. Nós não podemos ter uma visão catastrófica... eu não diria nem catastrófica, mas imediatista, porque é um processo lento.. Mas lento, se nós olharmos do ponto de vista de uma vida humana. Rápido, se nós olharmos do ponto de vista da espécie humana e da história deste planeta como um todo. As espécies sempre se adaptaram à mudança do ambiente. Mudanças do clima sempre ocorreram. Só que nós assimilamos esse processo. Algumas espécies vão se adaptar muito bem a essa velocidade de mudanças, outras não.
AmbienteJÁ – E qual a atitude mais sustentável que as pessoas podem adotar quanto às mudanças climáticas?
Simões – O grande problema é o seguinte: existe uma série de mitos de que o indivíduo em si iria resolver o problema. Não. Nós temos que começar com a mudança de escala de valores, mudança de padrões de consumo e, através disto, fazer pressão no meio político. Porque vai ser decisão política, em nível de Estado, e na escala global, é o único jeito de mudarmos. Não adianta o indivíduo Z, X ou B... – é claro, ele tem que dar o exemplo em casa, se não começar em casa não vai adiantar, não adianta ser hipócrita, fazer o discurso e não atuar, como muitas vezes ocorre. Por outro lado, não são essas pequenas atitudes de um indivíduo em si que irão ajudar. Muda na educação, muda quando ele começa a mudar o seu padrão de consumo. Entender que, hoje em dia, nós temos uma demonstração de status exacerbada na sociedade brasileira, que é muito agressiva, de compra de carros de alto consumo de gasolina. Adota-se a seguinte postura: eu posso, eu quero, e dane-se a sociedade, dane-se o meio ambiente.
AmbienteJÁ – E a questão dos grandes empreendimentos? Os Estudos de Impactos Ambientais muitas vezes são forjados para que se aceitem empreendimentos que prejudicam a própria sociedade causando danos, antes, ao meio ambiente. Que relações o Sr. vê nesses estudos com a questão das mudanças climáticas?
Simões – Isso mostra o que é profundo da nossa questão de valores. Pensa bem: o que é importante para você? Passar um fim de semana isolada, dentro de um shopping? Nós, criamos, principalmente na sociedade brasileira, nós estamos num processo de uma sociedade artificial...basta ver os shoppings da cidade de Porto Alegre. Eu estou brincando que a cada quatro meses, eles impõem uma nova medida de segurança. A sociedade não está se dando conta de que isto não pára. Ou seja, primeiro não se dava acesso, depois se dificultou o acesso por portas, hoje os shoppings já têm cercas... qual o próximo passo? Colocar pessoas com metralhadoras? E assim é exponencial, porque nós estamos adotando esse processo de enormes diferenças sociais. E essas diferenças sociais é um problema tão grave para as mudanças globais quanto o aumento do CO2.
AmbienteJÁ – É a questão da postura, dos valores?
Simões – A questão da postura, dos valores, que é mais importante do que falsas ações como plantar árvores.... Agora pegou essa moda de neutralizar. Isso é um absurdo porque não resolve o problema e depois que você planta aquela árvore, ela repõe, tira, tanto CO2 da atmosfera... ou seja, é só mais uma exploração pela mídia ou pelo meio comercial de uma ação, entre aspas, dita verde. Não adianta. Se nós não tivermos mudanças profundas na sociedade, na mente, mas não com o absurdo de idéias da revolução, do início do século 20, que levou à matança de milhões de pessoas. Nós temos que ter revolução de pensamento, revolução de relação homem-planeta, homem-outras espécies.
AmbienteJÁ – As pessoas conseguem ver o meio ambiente como parte delas ou vêem o meio ambiente como separado delas?
Simões – Isso é decorrência do ponto de vista filosófico, que surge lá no Iluminismo. Hoje em dia, a maioria das pessoas se vêem longe do meio ambiente, elas não se vêem como parte integrada. Com exceção das pessoas com esclarecimento intelectual maior, a grande maioria, inclusive, ainda, infelizmente, até no meio universitário, vêem o meio ambiente como algo a ser vencido, para ser dominado pelo homem. Vêem o meio ambiente como uma ameaça. Nós nos esquecemos que, até o início do século 20, a expectativa de vida do homem era de 35 anos. Ele estava constantemente em embate com o meio ambiente. Era uma questão de sobrevida, de luta do dia-a-dia. Só que os meios deles para destruir esse ambiente eram muito melhores, a população era muito menor. Com o desenvolvimento tecnológico, chegamos a uma população de sete bilhões de indivíduos que, ao mesmo tempo, não só quer viver mais, mas quer viver muito melhor, só que não dá para dar as condições.
AmbienteJÁ – O problema é qual o equilíbrio entre esse muito melhor que se quer viver e as condições gerais de vida para todos... seria um problema tecnológico?
Simões – Não, o problema não é a tecnologia, o problema é o uso dela. Nós não podemos cair no pensamento infantil de achar que a tecnologia é que é má. O problema não é o conforto em si, mas o padrão de consumo, as necessidades que não são necessidades porque são artificialmente criadas. O que são necessidades essenciais? Corresponde a ter uma boa expectativa de vida, ser bem alimentado, ter educação e ter um certo nível de consumo, consumo que se refira a uma quantidade suficiente de calorias por dia, para que se possa ter uma capacidade de se desenvolver intelectualmente, ter uma diversão. Isso já é um consumo alto para um país como o Brasil. Mas, nos países já tidos desenvolvidos, isso está exacerbado. E as classes alta e média, muitas vezes, também exarcebam esse consumo.
AmbienteJÁ – O que o Sr. considera como consumo sustentável, hoje?
Simões – Consumo sustentável, eu digo que é aquele em que você tenha que valorizar situações como moradia, saúde, educação e cultura. É onde você investe em padrões que não são destrutivos do meio ambiente. O que é destrutivo hoje? Padrões de consumo, de transporte individual, muitas vezes com dois, três carros. Carros de grande porte, desvalorização do transporte urbano, mas, ao mesmo tempo, como há um Estado minimalista, ele não quer gastar dinheiro com transporte público, acha que o indivíduo tem que pagar, e se retira. Outro problema de não-sustentabilidade é a alimentação em excesso. A gente pode ver que isto está se tornando um problema em outros países, inclusive em desenvolvimento. É a má alimentação, e não a falta de alimentação. Isso também está em desequilíbrio com o meio ambiente. Na verdade, a sustentabilidade é não ser consumido por um sistema do dinheiro per si, do valor do material per si. Nós não podemos ter uma posição niilista como "o dinheiro não vale nada"... precisamos ter recursos para sobreviver e ter uma certa qualidade de vida. A partir de um certo momento, não é mais necessário. Estamos falando em questões de relações de poder.
(Por Cláudia Viegas, AmbienteJÁ, 08/10/2007)