A longa disputa em torno das fábricas de papel que o Uruguai reivindica construir na fronteira com a Argentina foi um dos principais assuntos tratados pelo historiador e analista político Gerardo Caetano na entrevista concedida à Agência Brasil para falar da disputa presidencial argentina – as eleições serão realizadas no próximo dia 28.
Professor e diretor do Instituto de Ciência Política da Universidad de la Republica, no Uruguai, Caetano acha que o governo de Néstor Kirchner deveria tratar a celeuma como uma questão de interesse nacional, e não deixar que grupos ambientalistas dominem a discussão. Eles reclamam que a construção das indústrias à beira do Rio Uruguai viola um tratado assinado entre os dois países com normas sobre como cuidar do rio.
Agência Brasil: Como está a relação entre Argentina e Uruguai, países historicamente muito próximos?Gerardo Caetano: Com certeza, são países extraordinariamente próximos e não só em termos geográficos, mas também em históricos, culturais. Essa situação é absolutamente anômala. Apesar de que ao longo da história houve episódios de desencontro, nunca como agora existiram tantas razões para que Uruguai e Argentina caminhem juntos em uma perspectiva de integração regional, junto com seus outros sócios no Mercosul [Paraguai e Brasil].
ABr: E que situação anômala é essa?Caetano: Em relação ao conflito bilateral pelas fábricas de celulose, a situação está num impasse. Por um lado, está tramitando a demanda argentina na Corte de Haia. Por outro, há rumores sobre tentativas de negociações bilaterais, inclusive se tem dito na imprensa que esse acordo estaria muito próximo. Mas o certo é que a Assembléia de Ambientalistas de Gualeguaychu [cidade do lado argentino] radicalizou suas manifestações, inclusive manejando hipóteses de violência que obviamente estão gerando preocupação na sociedade uruguaia, também indignação. Aconteceram alguns episódios de conflito entre os ambientalistas e o próprio governo uruguaio, quando o presidente [Tabaré Vázquez] foi inaugurar o porto de Botnia [do lado uruguaio]. Alguns ambientalistas violaram as águas territoriais uruguaias.
ABr: Ambientalistas argentinos?Caetano: Sim. A isso, teria que se somar um comunicado de Romina Picolotti, secretária [nacional] do Meio ambiente, que trata o assunto [sob a ótica] de Gualeguaychu, em uma situação que não é feliz. O governo argentino deveria ver esse tema a partir de uma perspectiva nacional e não como uma demanda localizada dos ambientalistas de Gualeguaychu, que são o que hoje se chama de um grupo intenso, que tem uma única demanda e a converte na sua identidade, o que por definição não pode negociar. O interlocutor do governo uruguaio não é a Assembléia de Gualeguaychu, é o governo argentino, que deveria atuar como tal.
ABr: E não está atuando?Caetano: Creio que não. Ele nacionalizou uma demanda local, incorporou como sua uma demanda de um grupo intenso, muito localizado, e tornou esse um tema eleitoral. Não nos esqueçamos que a escalada do conflito se inicia em 2005, quando este problema foi tido como resolvido pelas autoridades. Naquele momento, o chanceler argentino, Rafael Bielsa, se transformou em candidato a deputado pela cidade de Buenos Aires [foi eleito] e tomou o tema das fábricas de papel como um tema de campanha, o que levou a uma radicalização do processo. O governo argentino, de forma inadequada, tomou a demanda da mudança de local da fábrica de Botnia [numa das cidades-sede segundo o projeto] como sua própria, nacionalizando o conflito e ao mesmo tempo incorporando uma lógica de isolamento. Estamos originariamente frente a duas demandas legítimas [ambiental e de captação de um investimento direto com “altíssima capacidade tecnológica”]. Caberia uma solução técnica, com respaldo político. O que se vê hoje é o pior. Entre dois povos irmãos, chegou-se a um confronto nacionalista, no pior dos sentidos.
ABr: O senhor disse que a campanha da Frente pela Vitória [coligação da candidata Cristina Kirchner] não tem ajudado a resolver o conflito. Por quê?Caetano: Os sucessos na Argentina nos últimos anos devem ser vistos a partir de uma referência, que são os episódios dramáticos ocorridos em dezembro de 2001. O que ocorreu no final de 2001 e no início de 2002 foi um episódio trágico, que gerou uma situação de vazio político e de decadência econômica e social que obviamente está condicionando os atores argentinos. Recordemos também que no mandato de transição de [Eduardo] Duhalde, [Néstor] Kirchner obteve a presidência em uma situação muito difícil, porque no primeiro turno, obteve pouco mais de 20% dos votos diretos, assumindo com debilidade de legitimação política e eleitoral muito grande. (...) Isso fez com que, em toda a presidência de Kirchner, a acumulação de poder local tenha sido uma idéia recorrente. E isso continua tendo uma forte influência às vésperas das eleições. Neste contexto, o conflito com as papeleras obviamente teria uma tradução eleitoral. Creio que o governo argentino ficou prisioneiro dessa lógica de acumulação de poder interno. Compartilho a política de não reprimir, sobretudo depois do que se passou na Argentina, mas a falta de ação em relação a piquetes que cortam a fronteira entre dois países que são irmãos historicamente e sócios de um processo de integração não somente afeta diretamente o direito internacional, mas também o processo de integração..
ABr: E quais são as perspectivas caso Cristina Kirchner vença?Caetano: Teremos que trabalhar com algumas hipóteses. O tempo dirá até que ponto são perspicazes. Tenho fundadas razões [para crer] e esperanças de que o presidente [Néstor] Kirchner não quer deixar para a sua esposa, que tudo indica vai ser a futura presidente, esse problema. Essa mudança de governo dá um espaço para que o presidente resolva o assunto entre a eleição e a posse. Rumores que saíram de fontes qualificadas, tanto jornalísticas como políticas, estão indicando isso, que há um acordo avançado. Em segundo lugar, creio que a senadora Cristina Kirchner tem uma visão política muito mais internacional que o presidente. Essa visão fez com que, antes de ser candidata, ela fosse uma figura que buscava conexões políticas favoráveis à Argentina. Seu vínculo com Michelle Bachelet [presidente do Chile], seus vínculos na Espanha, Venezuela, Bolívia, sua viagem aos Estados Unidos, onde teve encontros importantes... Creio que se pode esperar algo que este governo Kirchner não teve, que é uma política exterior realmente pró-ativa, que volte a priorizar o vínculo da Argentina com o mundo, e que não veja o mundo através dos olhos do que se passa na Argentina.
ABr: E se outro candidato, como Elisa Carrió ou Roberto Lavagna, vencer?Caetano: Temos dois países que estão, politicamente, encarando o problema de maneiras muito diferentes. No Uruguai, todos os partidos políticos respaldam o presidente na sua postura por Botnia [empresa finlandesa que vai construir uma das fábricas], não existem matizes. Na Argentina, claramente há uma contradição entre a Frente pela Vitória e os outros candidatos. Cristina Kirchner tem evitado falar do assunto, mas Lavagna falou, e a favor de uma rápida solução com Uruguai. Carrió falou a favor de uma rápida solução. Outras candidaturas, como a de Alberto Rodriguez Saá, inclusive utilizaram o tema em seus spots publicitários. A oposição a Kirchner se coloca do lado uruguaio, reclamando a necessidade de negociação razoável com o Uruguai. Isso faz com que a hipótese de um triunfo da oposição, que seria em segundo turno, reavivaria radicalmente a perspectiva de um acordo rápido. Eu creio, de todas as maneiras, que estamos próximos de um acordo, ganhe quem ganhe.
(Por Ana Luiza Zenker,
Agência Brasil, 07/10/2007)