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caatinga desmatamento
2007-10-01
Vítima do aquecimento global, nordestino colabora para agravá-lo

É de seca em seca que o nordestino vem se tornando vilão de si mesmo. No semi-árido, cortar madeira nativa da caatinga virou ganha-pão. Rende só o pouco para aliviar o drama da estiagem. Jurema, catingueira, juazeiro, marmeleiro, pereiro, espécies originárias da região são arrancadas sem dó para serem vendidas a carradas. Outra árvore, a algaroba, trazida do deserto de Piúma, no Peru, cinco décadas atrás, vai ocupando o espaço perdido do bioma original. Espalha-se pela paisagem como praga e também não escapa do machado e do facão daqueles que precisam sobreviver.

Na região do Seridó, no Rio Grande do Norte e na Paraíba, madeira vira lenha. Serve para alimentar fornos de cerâmicas que encontraram ali terreno fértil. Pois é do chão castigado pela falta de chuvas que as fábricas buscam argila. Alguns, por necessidade, vendem a terra boa do quintal para os ceramistas. Mas o grosso é retirado dos açudes. Homens munidos de pás arrancam o que podem. Deixam o solo nu. Contribuem para a erosão no local e além dele. Antes, a água baixava e o sertanejo plantava uma hortinha.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na semana passada em Nova York, anunciou que o País prepara um plano para enfrentar as mudanças climáticas. Lembrou que a Amazônia não padecerá isolada. A desertificação é uma ameaça. Especialistas já alertavam: o semi-árido está virando um grande deserto. Com a elevação da temperatura global - e de 2° a 5° no Nordeste - a evaporação de água na região aumentaria. A vegetação viraria mais cactácea, típica de zonas áridas. O solo, já pobre e de baixa produtividade, estaria sujeito a processos mais intensos de desertificação. É o Seridó atual.

Quem vê o trabalho de uma cerâmica ou mesmo as telhas assentadas nas casas do Nordeste se sente alheio ao dano ambiental. Ainda mais se considerar que traz prosperidade ao Seridó com salários de R$ 350 a R$ 1.000. Cada unidade emprega de 30 a 200 trabalhadores. Foi a partir dos anos 1990 que a atividade se expandiu velozmente. Antes disso, eram um ou outro galpão nas cidades. Hoje são mais de 150 fábricas em menos de uma dezena de municípios.

'Não tem mais açude para retirar lama por aqui. Temos de buscar cada vez mais longe', reconhece Alex de Medeiros Cavalcanti, de 28 anos, gerente de uma cerâmica potiguar. No caso da madeira, ele admite que, até o mês passado queimava jurema e catingueira. A fiscalização, contudo, alertou-os de que a prática será punida. E o preço da telha do Seridó é dos mais baratos do Brasil: R$ 80 a 110 o milheiro. A solução para os ceramistas têm sido produzir mais e queimar escondido a mata nativa. 'Mas, se pedirmos ajuda, qual governo vai querer ajudar uma atividade como a nossa?'

José Rodrigues Gomes, de 69 anos, viu seus seis filhos mudarem-se para a zona urbana de Currais Novos. Ninguém quis ficar para dividir os 80 hectares do pai. Nem os nove irmãos de Gomes resistiram, cada qual tendo herdado o mesmo tanto de terra. O aposentado vive bem sozinho, com uma ou outra jovem aparecendo de vez em quando de olho em sua aposentadoria. Tem 15 cabeças de gado e planta milho. Mas como a renda é pouca, o jeito tem sido cortar madeira. 'Isso custou o meu suor, essa propriedade não devo a ninguém. Se tiro um caminhão de lenha não é por brincadeira', reage, ao responder se não tem medo do Ibama.

'Já tem donos de terra ganhando mais com algaroba do que com gado', diz o coordenador ambiental de Currais Novos, Getson Luis Dantas de Medeiros. A planta exótica, que verdeja o paisagem dando a impressão de que a seca não está braba, tem um ciclo de 3 anos. Para crescer o mesmo tanto, uma árvore nativa leva de 7 a 10 anos.

No fim dos anos 1970, a região viveu a decadência do algodão e da mineração. E aí o homem foi abraçando as causas que via pela frente. 'Não era vantagem, porque o custo foi o desmatamento. Mas não havia escolhas', afirma o presidente da Agência de Desenvolvimento do Seridó (Adese), Francisco Galvão Freire Neto. Um levantamento que vem sendo feito pela Adese, com apoio da Cooperação Técnica Alemã, descobriu que o metro ester do produto varia de R$ 0,58 a R$ 13. Uma carrada são 20 metros esteres. A entidade propõe, como solução efetiva, a interligação de bacias hídricas da região para acabar com a falta de água e a construção de um gasoduto, que reduzirá o corte de madeira.

Outra ameaça é a pecuária de bodes e cabras. Espraia-se como erva daninha. São 9,5 milhões de cabeças (92,6% do rebanho brasileiro). É raro encontrar uma produção confinada e com manejo adequado. Os animais ficam soltos no pasto. Comem o que vêem pela frente. Devoram até a mata nativa, porque também querem sobreviver. No passado, o desmatamento em larga escala ocorreu por causa do gado bovino de corte e leiteiro. Ambos baseados no pastoreio exagerado. No longo prazo, a ciprinicultura vai reduzir ainda mais a caatinga.

No semi-árido são conhecidos outros três núcleos de desertificação: Gilbués (PI), cuja atividade de mineração devastou a terra fértil; Irauçuba (CE), vítima da ocupação desordenada do solo; e Cabrobó (PE), que não resistiu à agricultura e à pecuária sem manejo. Em todos, um denominador comum: a ação do homem. No quadro mais amplo, o cenário é assustador: à exceção do Maranhão, todos os Estados nordestinos podem estar sujeitos ao fenômeno. São 1.201 municípios, área de 1,13 milhão de quilômetros quadrados e população de 32 milhões de habitantes.

CONVIVÊNCIA PRECÁRIA

As secas severas que castigam o Nordeste de tempos em tempos são conseqüência do fenômeno climático El Niño, que se forma no Oceano Pacífico. Nos últimos anos, sua antípoda, a La Niña, tem prevalecido. Isso significa inverno chuvoso e verão seco para o sertanejo. É quando chove que o pequeno agricultor se endivida, planta e reza pedindo a Deus para que volte a chover na época certa do cultivo. A cultura do sequeiro é primitiva, mas parece ser a única que resta já que projetos de irrigação são poucos e voltados para uma minoria com dinheiro para investir. Quando se perde a colheita, o jeito é remediar.

Nos últimos anos, o nordestino desistiu de combater a seca para conviver com ela. São a cisterna, que capta água da chuva e mata a sede de uma família na estiagem, as barragens subterrâneas, poços e pequenas hortas. Aplacaram a fome, mas restou a miséria. Neste ano, carros-pipa já atenderam 335 municípios, segundo a Secretaria Nacional de Defesa Civil. Em 2006, foram 439 cidades e, no ano anterior, 596. A distribuição de água pelo Exército tem sido mais intensa nos Estados do Piauí, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte.

Na região de São João do Cariri (PB), choveu abaixo da média: 353,7 milímetros. Para piorar, 'as chuvas ficaram doidas', diz Getúlio José do Amaral, chefe da Emater local. Em janeiro, caiu um sereno de 2,3 milímetros. Ninguém se arriscou. Em fevereiro, foi aquela água. E dá-lhe tentar a sorte semeando feijão e milho. 'Em abril, foram 55,1 milímetros, muito pouco, e todo mundo perdeu tudo. Agora, voltou a cair água, só que não serve mais.'

(Por Eduardo Nunomura, O Estado de S.Paulo, 30/09/2007)



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