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2007-10-01

Em audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, mais de 500 representantes de comunidades quilombolas, vindos de várias partes do Brasil, se manifestaram contrariamente à possibilidade de alteração do Decreto Federal nº 4887/03, que trata dos procedimentos de demarcação de terras de quilombos e exigiram maior agilidade na titulação de áreas

 

Eram 14h da última segunda-feira (24/09), quando mais de quinhentos quilombolas entraram no auditório Nereu Ramos, na Câmara dos Deputados, portando faixas e cantando. A manifestação ocorreu na abertura da audiência pública organizada pela Procuradoria Geral da República (PGR) para entender as razões pelas quais o Governo Federal criou um Grupo de Trabalho Interministerial para alterar o Decreto nº 4.887/2003, que dispõe sobre a titulação de terras de quilombos.

 

Depois de a Rede Globo veicular, há alguns meses, uma série de matérias que questionavam a demarcação de áreas quilombolas, apontando supostas fraudes em alguns casos, a Casa Civil da Presidência da República determinou a revisão dos procedimentos de demarcação de terras de quilombos e criou o grupo, fechado à participação dos movimentos sociais interessados. Para divulgar esse processo é que foi convocada a audiência.

 

A coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação do Ministério Público Federal e sub-procuradora Geral da República, Déborah Duprat, abriu a audiência explicando a razão do encontro: responder às inquietações sobre a possibilidade de alterações no Decreto. Na mesa, estavam representantes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), da Advocacia Geral da União, da Fundação Cultural Palmares, da Secretaria de Promoção de Políticas para a Igualdade Racial (SEPPIR), da Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial da Bahia, do Ministério de Desenvolvimento Agrário, do Ministério do Meio Ambiente, do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, da Câmara dos Deputados e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas (Conaq). O Ministério da Justiça e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República não mandaram representantes.

 

A audiência fez jus ao nome. Os integrantes da mesa apenas tiveram tempo para se apresentar e imediatamente a palavra foi passada para a platéia. Antes, porém, a presidente da Conaq, Jô Brandão, iniciou o debate perguntando quem eram os quilombolas: “Não somos descendentes de escravos, mas de africanos. A escravidão nos foi uma condição social imposta, sendo os quilombos uma expressão de liberdade e os quilombolas construtores da sociedade brasileira”. A líder dos quilombolas terminou reivindicando ao Presidente da República a entrega de títulos de novas áreas já identificadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Não é a primeira vez que se tenta modificar o decreto que regulamenta a titulação de terras. Em 2004 o Partido da Frente Liberal – PFL (atual Democratas) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o referido decreto, questionando, entre outras coisas, o critério de autoidentificação e possibilidade de desapropriação de terras. Essa ação ainda está pendente de julgamento pelo STF.

 

O Consultor-Geral da União, Ronaldo Jorge Araújo Vieira Júnior, se defendeu dizendo que o grupo intragovernamental não havia sido criado para alterar o decreto, mas para discutir políticas públicas voltadas para as comunidades quilombolas, tendo em vista diferentes posicionamentos entre os ministérios. Esclareceu que a conclusão do grupo foi a de não alteração do Decreto nº 4887/2003, embora reconheçam nele algumas imperfeições. Ajustes poderão ser realizados na Instrução Normativa do Incra, que operacionaliza os procedimentos nele previstos. Afirmou, por fim, que qualquer alteração nos marcos legais da demarcação das áreas quilombolas não poderia ser realizada sem a consulta aos quilombolas, conforme dispõe a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)

 

Nas falas do grande público, o movimento social evidenciou as divergências internas no Governo quanto à titularização de áreas quilombolas. De um lado, setores que buscam garantir seu direito à terra. De outro, interesses que se preocupam tão somente em expandir a economia. E cobraram uma solução participativa que não atinja o Decreto nº 4887/2003, que depois de muitos anos passou a regulamentar um direito constitucionalmente assegurado. As soluções devem ser discutidas caso a caso, ouvidas as comunidades afetadas.

 

O destaque ficou para as reivindicações dos quilombolas de Alcântara (MA), de Marambaia (RJ), e de São Francisco de Paraguaçu (BA). Em relação a Alcântara, os quilombolas exigiram do governo a garantia de não-remoção das comunidades em razão de possível ampliação do Centro de Lançamento Aeroespacial, encampado pela Casa Civil. Quilombolas da Ilha de Marambaia exigiram a continuação do procedimento para titulação da área. O relatório técnico de identificação das terras promovido pelo Incra foi concluído em agosto de 2006 mas por conta de pressões da Marinha a titulação não foi concretizada . O caso de Paraguaçu, depois das matérias veiculadas pela Rede Globo, gerou a suspensão geral da certificação emitida pela Fundação Cultural Palmares e a criação de uma comissão de sindicância para investigar suposta fraude no processo. A sub-procuradora Déborah Duprat lembrou que as comunidades não necessitam ter sua identidade certificada, já que a Convenção nº 169 da OIT lhes garante o direito à autodeterminação. O presidente da Fundação Palmares, Zulu Araújo, anunciou que o resultado das apurações não apontou qualquer desvio no processo, o que permite a continuação dos procedimentos para a certificação. Várias lideranças reivindicaram que a Rede Globo desmentisse as acusações falsas que os quilombolas sofreram.

 

Além de esclarecer itens do decreto, a audiência pública serviu também para demonstrar a capacidade de mobilização dos movimentos quilombolas em defesa do direito à terra, da qual dependem para sobreviver e manter suas tradições culturais. São direitos assegurados pela Constituição Federal, mas sua efetivação depende da consciência sobre eles e de muita organização coletiva.
(ISA, 28/09/2007)


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