No início de setembro, poucos dias antes que se começasse a relembrar os 20 anos do acidente com o césio 137, em Goiânia, um incêndio queimou quase todos os 166 hectares do parque onde se encontra o depósito das 6.400 toneladas de resíduos radiativos para ali levados em 1987. Só não queimaram o prédio da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e as instalações do Batalhão Ambiental - os encarregados da proteção do parque (O Popular, 3/9). E de verde só restou a grama que cobre a elevação debaixo da qual se encontram os resíduos radiativos que representarão risco durante 200 anos.
Teria sido instrutivo se todo o Brasil houvesse visto esse retrato de mais um episódio do drama, no momento em que se discute a decisão do governo federal de instalar a usina nuclear Angra 3. Só quem vivia em Goiânia em 1987 (como o autor destas linhas) pode avaliar os dias de terror que se sucederam ao rompimento de uma bomba de césio 137, com 17 gramas desse elemento químico. Mais de 100 mil pessoas passaram pelos detectores de radiação, temendo que acusassem a contaminação. Os responsáveis pelo setor nuclear levaram uma semana para dizer à população que o césio não se propaga pelo ar. Mas até ali os goianos tinham seus carros apedrejados em outros Estados, viam seus produtos rejeitados no País todo.
Passados 20 anos, mais de 800 pessoas continuam a sofrer problemas graves de saúde com a contaminação; 52 morreram. A CNEN, encarregada de fiscalizar cerca de 50 mil fontes radiativas no País, só teve 50% de seu já reduzido orçamento liberado este ano, inclusive para a parte de segurança (Correio Braziliense, 16/9). Dos R$ 5 milhões destinados ao recolhimento e armazenamento de rejeitos radiativos, apenas 6,2% foram empenhados. Para controle de radiações em todo o País e proteção dos que trabalhem com esses equipamentos, só R$ 900 mil foram autorizados e R$ 330 mil, liberados, embora a legislação obrigue a fiscalizar cada fonte pelo menos uma vez por ano. Segundo o Greenpeace (13/9), “a grande maioria das instalações nucleares e radiativas da própria CNEN não está licenciada e apresenta-se fragilmente fiscalizada”.
Mas uma bomba de césio é quase uma brincadeira perto do que pode acontecer num acidente com reator nuclear. Basta lembrar o de Chernobyl, em 1986, no qual morreram mais de 4 mil pessoas, segundo a ONU, e milhões ainda sofrem com problemas decorrentes. Defensores da energia nuclear dizem que um episódio como esse não se repetiria. No entanto, a conservadora The Economist ainda há poucos dias (6/9) escreveu que a indústria nuclear “precisa provar” que é limpa, barata e segura: e, se não conseguir, “não merece uma segunda chance”.
Tem razão. No dia 19 de setembro, a usina de Kashiwazaki, no Japão, a maior do mundo, sofreu um incêndio em conseqüência de um terremoto a nove quilômetros de distância. Mais de um metro cúbico de água com elementos radiativos se espalhou no mar; 100 barris de lixo com roupas e luvas contaminadas foram encontrados sem tampa; houve “emissão acidental” de cobalto-60 e urânio-51 para a atmosfera. A Agência Internacional de Energia Atômica determinou o fechamento do local por um ano. A empresa responsável pela usina admitiu que as instalações “não estavam preparadas para um terremoto tão intenso”.
Na verdade, segundo o iraniano Najmedin Meshkati, da Universidade do Sul da Califórnia, considerado um dos mais competentes experts em segurança nessa área, quase nada se aprendeu com os grandes acidentes nucleares (New Scientist, 14/7). Ainda recentemente, diz ele, o governo do Irã pediu à empresa russa responsável pelas instalações nucleares naquele país que aperfeiçoasse o sistema de segurança; e os russos disseram que não podiam fazê-lo, haveria um agravamento “insuportável” dos custos.
Não custa repetir história já contada aqui. Há sete anos, o autor destas linhas visitou o projeto do depósito de lixo nuclear que o Departamento de Energia está construindo, ao custo de mais de US$ 30 bilhões, sob a Yucca Mountain, em Nevada, nos EUA. E quando perguntou ao diretor desse departamento como respondia a hidrólogos e sismologistas que diziam ser freqüentes na região abalos sísmicos, ele informou que três anos antes houvera um de 5.3 graus na escala Richter, mas sem danos ao projeto. E se o abalo fosse mais forte? Ele apontou um dedo para o céu e disse: “Ele garante.” O projeto está embargado pela Justiça, que considera insatisfatória a segurança. Mas no Brasil a própria CNEN atua como empreendedora, licenciadora, operadora e fiscalizadora na área. E que fará ela com o lixo altamente perigoso de Angra 1, 2 (em ambas sem destinação, depositado em piscinas nas próprias usinas) e 3?
Restaria ver, para responder à revista The Economist, a questão dos custos de Angra 3. Pode-se ficar com a opinião do engenheiro nuclear Joaquim Francisco de Carvalho, que aponta um custo médio de R$ 80 por MWh para a expansão do sistema elétrico brasileiro com outras fontes, ante R$ 144 da energia nuclear em Angra 3. Com esta, a cada ano haveria um prejuízo de R$ 470 milhões na geração. Ao final, a energia de Angra 3 custaria o dobro do que custa nas hidrelétricas (Eco21, julho de 2007).
Ainda assim, insiste-se no projeto e na implantação de outras usinas nucleares no País, com a alegação do risco de um “apagão”. Mas os defensores dessa tese sempre se esquecem de examinar a alternativa de redução do consumo - situada em quase 50% pela Unicamp - com programas de eficiência energética, conservação, repotenciação de usinas, redução das perdas na transmissão.
Os defensores à outrance da energia nuclear talvez devessem instalar a sede de suas operações na Rua 57, em Goiânia, onde foram piores as conseqüências do acidente com o césio 137. Ali, passados 20 anos, nenhum proprietário consegue vender seu imóvel. Custaria baratinho alugá-los.
(Por Washington Novaes,
O Estado de S.Paulo, 28/09/2007)