O presidente da Bolívia, Evo Morales, começa a jogar suas cartas de política externa no conflitivo Oriente Médio ao anunciar relações diplomáticas com o Irã, sob o preocupado olhar dos Estados Unidos e a férrea oposição do empresariado local. O governo esquerdista de Morales, que hoje recebe o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadineja, conta com o apoio dos movimentos sociais, que reivindicam as decisões soberanas desta nação do altiplano da cordilheira dos Andes. Muitos se perguntam o que pode existir de comum entre um país pobre como a Bolívia e outro muito distante, como o Irã, que agora é centro da polêmica e das críticas de potências ocidentais por causa de sua tecnologia nuclear.
A aproximação ocorreu de surpresa. Tanto que o embaixador dos Estados Unidos em La Paz, Philip Golderg, visitou sem avisar, na madrugada de sábado, o presidente Morales, que nesse momento preparava as malas para viajar a Nova York para a 62 sessão da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas. A presença intempestiva de Goldberg diante do mandatário tinha a urgência da iminente chegada a La Paz de Ahmadinejad, que hoje pisa em território boliviano para permanecer algumas horas quando assinará acordos de cooperação energética e de assistência técnica para a instalação de fábricas de produtos lácteos.
Goldberg reiterou na Bolívia que o Irã apóia ações terroristas no mundo e disse que o governo de seu país traduz essa preocupação da comunidade internacional. Em consonância com essas declarações, os empresários dos departamentos de Cochabamba e Santa Cruz expressaram temor por prováveis dificuldades no comércio exterior e recomendaram garantir convênios de intercâmbio com os Estados Unidos, um dos principais compradores de matérias-primas e manufaturadas bolivianas. Como país não-alinhado a Bolívia manteve uma prudente distancia de Estados como Irã, mas agora em círculos diplomáticos se anuncia que os vínculos se estenderão também à Líbia.
A jogada de Morales parece voltada a substituir parte da atividade petrolífera por parte de 12 multinacionais, pouco interessadas em realizar a exploração de novas reservas gasíferas, por capital iraniano que ajude a ampliar os mercados de exportação desse combustível e fortalecer a distribuição de combustíveis ao mercado interno. Diante desse desinteresse, o presidente ameaçou com uma reversão das concessões, enquanto Teerã informou a La Paz, por meio de seus enviados, do desejo de investir na indústria petrolífera, o que se complementaria com os investimentos anunciados pelos governos da Venezuela e Argentina.
Com um convênio de investimento petrolífero iraniano na Bolívia, o governo do Movimento ao Socialismo fortalecerá a quase inexistente Yacimientos Petrolífros Fiscales Bolivianos (YPFB), seguindo o caminho da economia planejada do novo aliado, um esquema no qual os dois governos estão plenamente de acordo. Embora não digam em voz alta, as empresas de petróleo que operam na Bolívia temem um lento deslocamento de suas operações, e por isso priorizam a exploração e produção de gás para cumprir os contratos de fornecimento assinados com o Brasil, de 30 milhões de metros cúbicos por dia, e com a Argentina, para o envio de quatro milhões de metros cúbicos diários.
À força de advertências, o governo conseguiu que essas 12 companhias anunciem um plano de investimento de US$ 587,8 milhões até o fim do ano, mas esse valor ainda não garantirá atendimento da demanda externa e interna que continua em crescimento. A falta de capitais e tecnologia adia o renascimento da estatal YPFB, e um investimento do Irã e da Venezuela pode ajudar neste objetivo, em um esquema que contribua para o equilíbrio diante da fortaleza estrangeira em matéria de indústria petrolífera. Os 3,979 milhões de barris de petróleo produzidos diariamente pelo Irã e os modestos 40 mil barris diários extraídos pela Bolívia, junto com seus 48 trilhões de pés cúbicos de reservas provadas e prováveis de gás, mostram a abismal diferença entre as duas nações.
Sem vínculo comercial algum, os dois Estados se debatem em modestas taxas de crescimento econômico que giram em torno de 4% ao ano, embora o produto interno bruto por pessoa seja de US$ 8.700 para cada iraniano e de apenas US$ 1.156 para cada boliviano. No entanto, essa diferença a favor do Irã não é tanta no tocante à pobreza, pois afeta 40% de seus 66 milhões de habitantes, enquanto esse flagelo atinge 67% dos 9,3 milhões de bolivianos. Enquanto o Irã é governado por um líder espiritual supremo designado por uma Assembléia de Especialistas e administrado por um presidente eleito nas urnas, na Bolívia vigora a forma democrática de governo, com um presidente e legisladores eleitos a cada cinco anos pela população.
As coincidências entre Morales e Ahmadinejad ficam no terreno da defesa das culturas originarias. Enquanto o primeiro constrói seu governo e objetivos com o apoio dos povos indígenas, o segundo exerce férrea defesa das culturas que deram origem às nações. A Bolívia encontra-se em um processo de reforma constitucional em uma assembléia onde 36 grupos étnicos buscam o reconhecimento de suas ancestrais formas de governo, reclamam territórios e recursos financeiros para se administrarem, diante de uma corrente conservadora que defende as autonomias departamentais e qualifica a proposta indígena como uma ameaça à unidade territorial.
No Irã predominam os persas cm 61% da população, os quais coexistem com os curdos com 9% e os baluches com 2%. Morales reiterou seu respeito às religiões existentes na Bolívia, onde vigora a liberdade de culto, enquanto Ahmadinejad expressou na ONU sua adesão a uma corrente monoteísta. A maioria da população iraniana professa a religião islâmica.
(Por Franz Chávez,
IPS, 27/09/2007)