Cada vez mais jovens, cortadores de cana são obrigados a duplicar a produtividade para competir com as máquinas
Embalada pelas vantagens competitivas do etanol brasileiro no mercado internacional, a expansão da agroindústria canavieira tem modificado a paisagem do interior do Brasil. A necessidade de não perder espaço para concorrentes acelerou o avanço das modernas colheitadeiras no cenário antes ocupado por trabalhadores braçais.
Mais do que a redução do nível do emprego, a mecanização das lavouras tem alterado o perfil dos cortadores de cana-de-açucar e a lógica da produção. Enquanto as máquinas não substituem completamente o corte manual, os bóias-frias, cada vez mais jovens, se vêem obrigados a duplicar – ou triplicar - a própria produtividade para competir com as inovações tecnológicas, manter o emprego e garantir uma boa remeração no fim do mês.
O ritmo de trabalho alucinado aumenta a incidência de lesões e doenças laborais. Uma incômoda realidade que os empresários do setor preferem encarar como um resquício de um modelo baseado na mão-de-obra humana, agora em substituição.
A reflexão é do economista e cineasta José Roberto Pereira Novaes, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador de um projeto que mobiliza pesquisadores de quatro universidades federais. O objetivo é revelar a saga dos migrantes nordestinos em busca de oportunidades de trabalho nos canaviais do interior paulista, a “Califórnia brasileira”.
O trabalho se desdobrará em um documentário e um livro de artigos acadêmicos, que serão lançados em outubro. Um ensaio fotográfico de Flávio Conde, acompanhado de um texto de Novaes, também serão publicados na revista Democracia Viva, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), no fim de setembro. A CartaCapital, Beto Novaes, como é conhecido, falou sobre os resultados do projeto, que ouviu trabalhadores no Maranhão, no Piauí e em São Paulo.
CartaCapital: Mudou o perfil dos cortadores de cana do interior de São Paulo?
Beto Novaes: A juventude está cada vez mais presente nos canaviais paulistas. Fizemos um levantamento em 1.269 carteiras profissionais e 70% dos cortadores são jovens, com idade entre 18 e 29 anos. Quase todos são migrantes, a maioria vinda de Minas Gerais e da Paraíba. Mas, nos últimos anos, houve um aumento considerável de migrantes maranhenses e piauienses. Com a expansão das áreas de plantio da cana em São Paulo, a demanda por mão-de-obra cresceu, fenômeno inverso ao do interior nordestido, marcado pelo desemprego.
CC: Quais são os atrativos das lavouras paulistas?
BN: As famílias desses jovens vivem da agricultura de subsistência, em pequenas propriedades familiares ou terras arrendadas. Com o desenvolvimento das grandes lavouras comerciais no Nordeste, o valor da terra subiu. Muitas famílias migraram do campo para a periferia das cidades. Só que lá não há emprego para a juventude. Como alternativa, eles passam a migrar para as fronteiras agrícolas da região amazônica. Outros decidem ir para os canaviais paulistas. No corte da cana, eles são valorizados. É uma mão-de-obra bastante qualificada, com força física e histórico de trabalho pesado na agricultura.
CC: A mecanização das lavouras não diminui a oferta de emprego?
BN: O corte mecanizado corresponde a 35% da área colhida no estado, com variações regionais. Em Ribeirão Preto, há usinas com mais de 90% da colheita feita por máquinas. Em Piracicaba, pela declividade do solo, o índice é bem inferior. Uma colheitadeira faz o trabalho de cerca de 100 homens, mas custa 800 mil reais. O investimento total para colocá-la em funcionamento, com os equipamentos de apoio necessários, chega a 2 milhões de reais. Ainda há mercado de trabalho para os cortadores. Mas a mecanização traz outros impactos negativos, como a imposição de um ritmo de trabalho alucinado no corte manual, para que ele se torne competitivo.
CC: O trabalhador braçal passa a competir com a máquina?
BN: Exatamente. Cada homem precisa cortar ao menos 10 toneladas de cana por dia. As marcas médias variam de 12 a 15 toneladas. É o dobro de 30 anos atrás. Como o salário está atrelado à produtividade, os cortadores trabalham no limite da capacidade física. E as usinas estimulam essa prática, com técnicas de motivação psicológica e premiação para quem atinge as metas da empresa. Os “campeões de produtividade” ganham bicicletas, geladeiras, fogões. A rotina é árdua, mas os empregados agradecem a Deus por ter trabalho.
CC: Os direitos trabalhistas são respeitados?
BN: Muitos empregadores ainda não cumprem todas as obrigações. Mas, mesmo quando pagam tudo direitinho, o trabalhador está em risco. O salário base da categoria é, em média, de 480 reais por mês, com chance de ser duplicado ou triplicado se o empregado produzir mais. Só que, para cortar 10 toneladas de cana em um dia, o camarada precisa fazer cerca de 9,7 mil movimentos sincronizados. Isso provoca a incidência precoce de lesões e doenças laborais, como tendinite, bursite, problemas de coluna. Não adianta o empregador pagar 13º salário, férias, fundo de garantia. Os direitos estarão cumpridos, mas teremos trabalhadores morrendo no campo.
CC: Durante a pesquisa, o senhor se deparou com algum caso de morte no campo por excesso de trabalho?
BN: É uma questão polêmica, porque os médicos só registram no obituário as causas clínicas da morte. O sujeito cortou 15 toneladas de cana, sentiu-se mal à tarde e morreu. Causa mortis: enfarto. Ponto. Será que a morte está relacionada ao trabalho no campo? Os empresários dizem que não, que serão mais rigorosos nos exames médicos de admissão. Os sindicalistas e movimentos sociais acreditam que sim. Para o documentário, colhi depoimentos de um homem que viu o amigo morrer na lavoura. Outro de uma mulher que perdeu o marido, vítima de Acidente Vascular Cerebral (AVC). Também falei com um homem que caiu do ônibus e ficou inválido. Aguarda há três anos pela aposentadoria.
CC: E quando o trabalhador fica doente? A produtividade não cai?
BN: Nem sempre. Para preservar a saúde do cortador de cana, o mais racional seria reduzir o ritmo do trabalho. Mas, se a produtividade cai, ele ganhará menos e corre o risco de perder o emprego. Quando as doenças se manifestam pela primeira vez, o pessoal procura um médico e recebe a indicação de um antiinflamatório ou analgésico. Ao sentir os sintomas novamente, vai direto à farmárcia e compra algo para ficar de pé no dia seguinte. As usinas oferecem aos empregados doses diárias de complexos vitamínicos e compostos hidroeletrolíticos para evitar as câimbras. E os funcionários adoram, porque vão conseguir trabalhar com mais disposição e sem dor. Hoje, os jovens conseguem suportar essa rotina. Mas até quando?
CC: O que os jovens fazem durante a folga?
BN: O jovem migrante está submetido ao regime do ônibus. Precisa estar pronto às 5 horas da manhã, com café tomado e a refeição pronta para o almoço. A disciplina do trabalho modifica sua rotina. Se ele sai para o forró à noite e bebe umas e outras, como fazem outros trabalhadores da região, não conseguirá enfrentar a jornada do dia seguinte. Isso não significa que eles não estejam antenados à modernidade. Muitos usam brincos, colares, piercings e tatuagens, como qualquer jovem. Mas se auto-censuram quando a diversão compromete a produtividade.
(Por Rodrigo Martins,
CartaCapital, 24/09/2007)