Em 1517, a Reforma foi deflagrada por causa do envio do frade dominicano Johann Tetzel de Roma à Alemanha para vender indulgências -uma espécie de letra de câmbio papal, com a qual se resgatavam na Casa do Tesouro do Mérito os pecados cometidos. Era pagar e ir para o céu.
Martinho Lutero discordou do esquema, escreveu suas 95 teses e pregou-as na porta da igreja do Castelo de Wittenberg. O resto é história.
A compra e venda de indulgências, no entanto, segue firme. Mudou de ramo, aplacando agora consciências recém-convertidas ao credo ambiental por meio da neutralização de carbono. Parece bem lucrativo, e por ora não se vislumbra o risco moral de um Lutero verde no horizonte.
Os jornais diários são a oração matinal realista do homem moderno, já disse Hegel. Com efeito, foi nas páginas do "Los Angeles Times" que encontrei -após uma dica da página de internet ksjtracker.mit.edu- um desafio frontal ao papa da santimônia ecológica, Al Gore. No foco da denúncia, o documentário "Uma Verdade Inconveniente", já criticado aqui em 19 de novembro de 2006.
Outros jornalistas tinham pegado no pé de Gore por causa da conta de eletricidade de sua casa, que monta a milhares de dólares. O gasto excessivo de energia estava em contradição com as mudanças de comportamento que ele prega, destinadas a reduzir emissões de carbono de cada indivíduo preocupado com o aquecimento global e o futuro do planeta.
A própria produção do filme, porém, provocou o lançamento de muito gás do efeito estufa na atmosfera. A cada viagem de jato do pregador Gore, por exemplo, o querosene queimado nas turbinas lança no ar compostos -como o gás carbônico- que ajudam a engrossar a camada de gases que retêm calor na atmosfera, aquecendo-a.
O fenômeno é análogo ao que esquenta o ar dentro de uma estufa de plantas (daí o nome "efeito estufa"). Como Gore e sua trupe são ecologicamente corretos, preocuparam-se em "neutralizar" tais emissões. Funciona assim: alguém contabiliza todas as atividades relacionadas com o filme que emitem gases-estufa, converte-as para toneladas equivalentes de gás carbônico e paga para algum corretor de títulos de carbono comprá-los no mercado livre.
Se você está achando a coisa toda muito parecida com a compra e venda de indulgências, bem, é isso mesmo. Pelo menos é o que se depreende da reportagem de Alan Zarembo no "LA Times" de domingo passado: os 496 dólares e 96 centavos que os produtores de "Uma Verdade Inconveniente" pagaram para neutralizar as 41,4 toneladas de carbono geradas pelo filme não serviram para grande coisa.
O intermediário, uma firma chamada Native Energy, empregou o dinheiro para comprar e repassar -com lucro provável de quase 10 dólares por tonelada- títulos de projetos que haviam economizado emissões de gases-estufa na Pensilvânia (geração de eletricidade a partir de metano de esterco de vaca) e no Alasca (eletricidade produzida com turbinas de vento).
O galho, descobriu o repórter Zarembo, é que ambos os projetos iriam ser feitos de qualquer jeito, com ou sem os títulos de carbono. O dono das vacas pretendia ganhar direito vendendo eletricidade extra para a rede e aceitou alegremente, sem negociar, a primeira oferta da Native Energy para comprar as reduções. Algo de similar aconteceu no Alasca.
Johann Tetzel e Al Gore que nos perdoem, mas está fazendo falta um Lutero para sacudir a igrejinha verde de nossos tempos.
(Por Marcelo Leite,
Coluna Ciência em Dia, 17/09/2007)