Cerca de 500 representantes de comunidades remanescentes de quilombos de todo o Brasil se reuniram ontem (24/09) em Brasília para discutir seus problemas e protestar contra a possibilidade de revogação do decreto presidencial 4887/2003, que regulamenta a demarcação e a titulação dos territórios dessas comunidades. Uma proposta de decreto legislativo apresentada pelo deputado Valdir Colatto (PMDB/SC) atualmente em tramitação na Câmara revogaria o decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
- Basicamente, (exigimos) o cumprimento do artigo 68 (do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal), regulamentado pelo decreto 4887, que diz que as comunidades quilombolas têm direito ao título de propriedade das terras e que o Estado brasileiro tem que efetivar essa política - define Ronaldo dos Santos, integrante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas Rurais Negras (Conaq), que é morador do Quilombo Campinho da Independência, em Paraty (RJ).
Ele diz saber que as respostas às reivindicações podem não vir logo, mas afirma que as comunidades estão preparadas para continuar a luta.
- A gente sabe que essa luta não vai ser fácil, ela tem 500 anos, então nós vamos continuar aí prontos para o que der e vier - disse Ronaldo.
A audiência pública com os quilombolas teve participação de representantes de diversos órgãos do governo, como a Fundação Palmares, a Advocacia Geral da União e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), além do Ministério Público Federal. Os representantes dos órgãos públicos responderam a perguntas e críticas dos quilombolas sobre a lentidão da aplicação das políticas públicas.
De acordo com o também integrante da Conaq e morador do quilombo de Furnas do Dionísio (MS) Jhonny Martins de Jesus, a audiência pode ser dividida em dois momentos. "O primeiro é ouvir o que o governo tem a dizer", diz.
- O segundo momento é cobrar ações do governo e mostrar a força do movimento quilombola - afirmou.
Jhonny completou:
- A gente tem o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), tem o Brasil quilombola, ações para comunidades quilombolas, mas até então elas (as comunidades) não tinham o seu bem maior que é a sua terra.
Sabemos que os quilombos são locais de difícil acesso, então, quando a gente coloca mais de 500 pessoas em Brasília, em tão pouco tempo, a gente vê como o povo está sendo oprimido lá no seu território.
Uma das participantes da audiência foi Vani Guerra, que veio da comunidade quilombola de Ilha do Marambaia (RJ). Ela conta que os moradores da área estão lá desde a época em que a escravidão foi abolida, em 1888.
- Éramos poucos e ficamos lá. Agora o governo quer tirar a gente, nós estamos lá há quase 150 anos, e agora a Marinha diz que nós não temos direito - reclama.
Ela veio a Brasília cobrar apoio do governo e a titulação das terras em que sua comunidade vive. E conta que quase ninguém que mora lá sabe da proposta que pretende revogar o decreto presidencial que regulamenta a demarcação e titulação daquelas terras.
- A gente está sabendo agora, aos poucos", por falta de acesso aos meios de comunicação, conta. "A comunidade fica lá, jogada num canto, ninguém conhece, e o governo faz questão de continuar mantendo escondido - concluiu Vani Guerra.
Nesta terça-feira, os representantes das comunidades vão realizar um ato em defesa dos direitos quilombolas, na Câmara dos Deputados, contra a proposta do deputado Valdir Colatto. Além do decreto 4887, os quilombolas defendem o cumprimento da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário. Esse documento, ratificado pelo Congresso Nacional, garante o compromisso do país com os direitos de comunidades tradicionais.
O projeto de decreto proposto por Colatto não propõe alternativa ao decreto 4887, apenas o revoga - "bem como todos os atos administrativos expedidos com base no aludido decreto". Segundo a justificativa de Colatto, teria havido "exorbitância no uso do poder" por parte do presidente Lula, ao regulamentar um artigo da Constituição por decreto (isso não seria possível, segundo o artigo 84 da própria Constituição).
O deputado afirma ainda em sua justificativa que o decreto presidencial faz "tabula rasa" do direito à propriedade no país e cita um processo que acontece em Santa Catarina, o da comunidade Invernada dos Negros, em Campos Novos (SC) para dizer que ele promove uma "política separatista" e "poderá gerar sérios conflitos entre amigos e vizinhos, que pretende separar pela cor ou tom da pele".
(
Agência Brasil, 24/09/2007)