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hidrelétrica de pai querê passivos de hidrelétricas
2007-09-24
O título é esperançoso, mas o conteúdo é assustador e preocupante. Leva a uma profunda reflexão sobre o modelo de licenciamento ambiental e, antes, sobre a estrutura subjacente à prática de Estudos de Impacto Ambiental que se proliferou no Brasil, pautada pela relação de subordinação entre elaboradores e proponentes de projetos. Assim é o documento "Hidrelétrica de Pai Querê: ainda há tempo para impedir mais uma grande tragédia sobre a biodiversidade da Bacia do Uruguai", que ecologistas e pesquisadores do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais, da Fundação Gaia e do Núcleo Amigos da Terra encaminharam ao Ministério do Meio Ambiente na semana passada.

Fruto de um projeto com raízes na ditadura militar, com o intuito de produzir o máximo de energia sem a devida cautela de preservação ambiental, o projeto da usina está previsto para o Rio Pelotas, num aproveitamento de um desnível de 150 metros do rio, em 80 quilômetros de extensão. Vai contribuir para pôr sob água 6,12 mil hectares da Zona Núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, Patrimônio Mundial classificado pela Unesco, agência das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. Florestas e campos de araucárias da região – entre os municípios de Bom Jesus (RS) e Lages – estão ameaçados também fora do vale do Rio Pelotas. Conforme o documento, 75% dessa vegetação nativa podem desaparecer não apenas devido à usina em si, mas ao avanço das madeireiras e ao corte raso que dá espaço ao monocultivo extensivo de soja. Os campos de cima da Serra, aos poucos, vão sendo invadidos pelo pinus, e a diversidade do verde dá lugar à homogeneidade e à pobreza ecológica.

Imagens de satélites disponibilizadas pelo Google Earth, mostradas no estudo, permitem visualizar os últimos remanescentes primários da floresta ombrófila mista, também conhecida por mata de araucária, da qual restam menos de 5 % da sua extensão original. A maior parte destas extensões são consideradas áreas de preservação permanente pelo Código Florestal Federal (Lei 4.771/1965).

Rio ou seqüência de lagos?
A persistir o processo de construção de novas usinas na região, seguindo o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), a tendência, de acordo com os ecologistas e pesquisadores, é o desaparecimento do Rio Pelotas, o qual se transformaria em uma escada de lagos artificiais, "praticamente colando o muro de uma hidrelétrica na ‘rabeira’ da inundação da barragem subseqüente". Nos últimos cinco anos, entraram em operação Machadinho, Campos Novos, Foz do Chapecó e Barra Grande, o que trouxe grande impacto à biodiversidade do Corredor Ecológico do Rio Uruguai.

E a Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE) do Ministério das Minas e Energia prevê ainda mais nove unidades entre usinas e aproveitamentos hidrelétricos para a bacia do Uruguai até 2015. Com a mudança rápida da paisagem, os registros fotográficos da região, de agora, poderão vir a ser apenas memória em menos de uma década.

Adeus, bromélias e mamíferos
Somente em memórias estarão também bromélias e mamíferos típicos daquela área. De acordo com cientistas que estudam a flora da região, "a vazão do rio Uruguai alterou-se de tal forma que a jusante dos barramentos desapareceram as populações de Dyckia brevifolia (bromélia-do-rio), espécie reófita assinalada como ameaçada na Portaria do Ibama nº. 37 de 1992, que ocorria no Parque Estadual do Turvo, em Derrubadas (Brack et al. 1985). O desaparecimento deve-se, ao que tudo indica, pelas cheias mais duradouras quando da abertura das comportas de vertedouros das barragens. A informação da ausência desta planta foi fornecida pelos Drs. João André Jarenkow (UFRGS), Ademir Reis (UFSC) e o falecido Bruno Irgang (UFRGS), sendo tal fato confirmado em 2006", atesta o relatório.

Com a construção de Pai Querê, vão desparecer espécies como o queixada ou Tayassu pecari, mamífero já desaparecido no restante do Estado. Estarão ameaçados a jaguatirica (Felis pardalis), o puma (Felis concolor), o gato-mourisco (Felis yagouaroundi), os veados (Mazama spp., Ozotocerus beozoarticus), entre outras espécies apontadas por pesquisadores do Departamento de da Zoologia da UFRGS. Entre 228 espécies de avifauna, 27 estão ameaçadas de extinção, entre elas o gavião-de-penacho (Spizaetus ornatus) e papagaio-charão (Amazona pretrei), segundo pesquisadores do Laboratório de Ornitologia da PUC-RS. Ainda na região, cientistas do Laboratório de Ictiologia do Departamento de Zoologia da UFRGS detectaram a presença de 13 espécies de peixes consideradas novas para a Ciência, as quais, com o empreendimento, estão igualmente em risco.

Falhas no EIA e no RIMA
Sem esquecer que o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) de Pai Querê foram elaborados pela mesma consultoria que "omitiu" 5,7 mil hectares de florestas no EIA e no RIMA de Barra Grande, a avaliação de impacto ambiental realizada para Pai Querê, pela Engevix, tem diversas falhas, denunciam os pesquisadores da UFRGS. "O EIA-RIMA de Pai Querê, submetido ao Ibama, é tecnicamente superficial, inconsistente e contraditório", apontam.

O estudo da Engevix deixou de fora o urubu-rei (Sarcoramphus papa), "espécie ameaçada, registrada em duas ocasiões em que professores, estudantes da UFRGS e voluntários de ONGs ambientalistas estiveram na área de influência direta do empreendimento", explicam os ecologistas. Além disto, no EIA e no RIMA oficiais, a consultoria apontou a presença de 140 espécies de flora, enquanto que a equipe da UFRGS detectou 250, em apenas cinco dias de trabalhos de campo, e ainda "17 espécies de orquídeas nas matas sujeitas ao alagamento, contra nenhuma citação de espécies de Orquidáceas no EIA da Engevix.

E mais: "O estudo da empresa não fez referência a várias espécies que constam em listas oficiais de espécies ameaçadas (IUCN, Ibama, Decreto Estadual do RS, n. 42.099/2002). O estudo fitossociológico aponta apenas 22 espécies de árvores, o que é absolutamente inverossímil para os padrões da Floresta Ombrófila Mista, sendo 16 delas identificadas de modo falho: cinco espécies não são identificadas e 11 são identificadas apenas pelo gênero. Ou seja, 70% do levantamento fitossociológico não tem valor técnico", destaca o trabalho da UFRGS.

Tamanho do impacto x licença
Qual a validade científica dos EIA? Qual a fidedignidade e o compromisso desses estudos com a sustentabilidade ambiental? Estas são também questões colocadas pelos ecologistas e cientistas que analisaram casos como "Barra Grande" e, agora, Pai Querê. Segundo eles, em 2001, a Engevix publicou um documento chamado "Estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental" da UHE Pai Querê, no qual considerou como de "pequena magnitude" a "fragmentação e perda dos ecossistemas aquáticos". "A empresa considerou pequeno o impacto sobre o meio aquático, sem nenhum embasamento técnico", denunciam os pesquisadores. Isto acontece porque "as consultoras são contratadas e pagas diretamente pelos empreendedores, a parte mais interessada na emissão das licenças".

Rios escravos
Os rios brasileiros estão virando patrimônio privado e deles se busca retirar o máximo em energia, sem considerar sua vitalidade inerente, sua condição de sistemas dinâmicos dos quais depende todo um conjunto de fauna e flora. A escravidão, por assim dizer, vem se aplicando também dos rios como suportes da vida.

"Por que não considerarmos a importância da permanência de ‘Reservas Legais’ para os rios brasileiros? Com que base equipes consultoras e órgãos governamentais de produção energética podem definir que os rios sejam utilizados em 100% de seu curso? Esses estudos de licenciamento, para que pudessem ser incluídos em um rol de critérios de sustentabilidade, deveriam basear-se em avaliações sérias, não viciadas, dando a possibilidade de licenças para empreendimentos de menor impacto. Aqueles que tivessem grande impacto, como no caso de Pai Querê, deveriam ser impedidos ou ter seus projetos refeitos. Porém, no Brasil os setores energético e econômico não estão acostumados a reavaliações e a impedimentos aos tradicionais pleitos imediatistas de crescimento econômico, muitas vezes a qualquer custo. Neste país, é costume primeiro se fazer o projeto do ponto de vista econômico para muito depois avaliar os seus possíveis prejuízos socioambientais", atesta o documento assinado por ecologistas e cientistas da UFRGS – Paulo Brack , professor do Departamento de Botânica da UFRGS, doutor em Ecologia; Adriano Nygaard Becker, jornalista e fotógrafo, conselheiro do Núcleo Amigos da Terra/Brasil; Cristiano Eidt Rovedder, mestre em Zoologia do Laboratório de Ornitologia da PUC-RS; Eduardo Forneck, doutor em Ecologia; Lucia Schield Ortiz, geóloga, coordenadora do Núcleo Amigos da Terra – Brasil; Renzo Bassanetti, geógrafo e ex-diretor do Parque Nacional dos Aparados da Serra (2003-2006); Vicente Medaglia, filósofo e especialista em Diversidade da Fauna.

(Por Cláudia Viegas, Ambiente JÁ, 21/09/2007)

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