Após mais de vinte anos de negociações, a Assembléia Geral adota o documento, primeiro instrumento jurídico universal a afirmar o direito desses povosA Declaração Internacional dos Direitos Indígenas foi aprovada na quinta-feira (13/09), na sexagésima primeira sessão da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU).
Apresentada pelo Peru, a resolução que adota a declaração foi homologada por 143 votos contra 4 (Austrália, Canadá, Estados-Unidos e Nova Zelândia) e 11 abstenções (Colômbia, Azerbaijão, Bangladesh, Geórgia, Burundi, Rússia, Samoa, Nigéria,Ucrânia, Butão e Quênia).
O texto inicial já havia sido adotado em 29 de junho do ano passado, no Conselho de Direitos Humanos da Organização. "Acompanhamos ao longo dos anos essa discussão, que foi demorada, mas que se consolidou numa das conquistas mais históricas do movimento indígena internacional e nacional", comemora Jecinaldo Sateré, coordenador da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira).
O líder indígena brasileiro diz que a adoção da Declaração representa um avanço, mas que ainda há muito a enfrentar dentro do próprio país para fazer valer o texto: "apesar do Ministério das Relações Exteriores e o Itamaraty terem se posicionado a favor, setores mais conservadores do governo, como o Ministério da Defesa, são contrários à luta territorial, ao controle dos recursos naturais e à autonomia dos povos indígenas. É um ponto que deve ser superado".
DireitosAlém de proibir a discriminação e reconhecer os direitos culturais dos povos indígenas, a Declaração afirma seu direito à auto-determinação - a autonomia e a administração de suas questões internas -, bem como o direito de dispor de meios de financiamento próprios para suas atividades.
O texto estipula que os povos indígenas são livres para reforçar e manter suas instituições políticas, jurídicas, econômicas e sociais, além de, se assim o quiser, participar plenamente da vida política econômica e cultural do Estado.
Uma das questões centrais da Declaração é assegurar o direito dos povos a suas terras e recursos ancestrais. Desta maneira, cabe aos Estados reconhecer e oferecer proteção jurídica a esses bens. Os povos indígenas possuem igualmente direito à reparação, que pode ser feita em forma de territórios e recursos equivalentes.
A Declaração afirma o direito dos povos indígenas de praticar suas tradições, costumes e ritos religiosos e espirituais; a reavivar, utilizar, desenvolver e transmitir às futuras gerações sua história, língua, suas tradições orais, seus sistemas de escrita e sua literatura. De acordo com o texto, eles têm, também, o direito de estabelecer e controlar seus próprios sistemas escolares.
Longo caminhoO Canadá, a Nova Zelândia e os Estados Unidos se pronunciaram em nome dos países que votaram contra o texto. Eles se declararam "preocupados" com alguns dispositivos relativos à terra e aos recursos naturais, assim como o direito à indenização. Esses Estados temem a formação de "nações indígenas" dentro de seus territórios.
Os países que se pronunciaram a favor da Declaração, no entanto, não vêem a autodeterminação como uma ameaça aos Estados. Como se trata de um instrumento jurídico não obrigatório, as disposições devem ser examinadas de acordo com as especificidades da legislação de cada país.
Na sessão que aprovou a resolução, a presidente da sexagésima primeira Assembléia Geral da ONU, Sheika Haya Rashed Al Khalifa, lembrou que um longo caminho foi percorrido desde 1992, data em que as Nações Unidas haviam aberto as portas aos povos indígenas com uma cerimônia que marcou o "Ano Internacional dos povos indígenas". Em 1995, foi declarado o Decênio Internacional dos Povos Indígenas, que seria dedicado à aprovação da Declaração.
Passados os dez anos e sem a adoção do documento, lideranças indígenas fizeram greve de fome em frente ao prédio da ONU como forma de pressão. A Assembléia Geral proclamou, em 2006, o Segundo Decêncio, que se estende até 2014.
Sheika Haya Rashed Al Khalifa, lembra que, apesar dos avanços, os povos indígenas conhecem ainda a marginalização, a extrema pobreza e outras violações de seus direitos como a falta de acesso à saúde e educação. "Nós não devemos, entretanto, fazer os povos indígenas de vítimas, e sim reconhecer suas contribuições", afirmou em nota lida na solenidade. Para ela, o texto, fruto de mais de 20 anos de negociações, não pode ser subestimado.
Desafios para o futuro"Lançamos um chamado aos governos, ao sistema da ONU, aos povos indígenas e à sociedade civil para que se mostrem à altura da tarefa histórica que nos aguarda e façam da Declaração das Nações Unidas dos Direitos dos Povos Indígenas um documento essencial para o futuro da humanidade", declarou Victoria Tauli-Corpuz, presidente do Grupo Permanente de Questões Indígenas, na sessão informal que seguiu à adoção do documento.
"A etapa atingida hoje com a adoção dessa Declaração permitirá que eles possam dar sua contribuição nesse momento em que pesam as ameaças de mudanças climáticas e perda da biodiersidade", comemorou David Choquehuanca, ministro das relações exteriores da Bolívia e um dos co-autores do texto, na mesma ocasião.
Jose Alberto Briz-Gutiérrez, da Guatemala, apontou que o mais importante desse processo é que os povos indígenas dispõem, hoje, de um instrumento equilibrado e útil para defender suas reivindicações. "Seria certamente melhor que o texto fosse adotado por consenso. Foi necessário trazer emendas à versão apresentada ao Conselho de Direitos Humanos para que ele pudesse ter o maior apoio possível", afirmou.
No Brasil, Jecinaldo Sateré ressalta que o debate foi unificador e que a sua aprovação é resultado do empenho do movimento indígena como um todo: "estamos lutando pelos nossos direitos, nossa dignadade, que foram roubados por anos das populações indígenas. Queremos trilhar um caminho diferente do da colonização. Nosso debate perante o governo brasileiro vai se apoiar nessa declaração pra fazer com que as nossas leis não fiquem apenas no papel".
Veja o texto integral da Declaração (disponível em espanhol).
(Por Fernanda Campagnucci,
Amazonia.org.br, 17/09/2007)