Pouco mais de 3 mil indígenas, que vivem às margens dos rios Içana, Waupés e Cauaboris, foram examinados por cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). O resultado é dramático: cerca de 2,1 mil (ou 70%) estão com mansonelose, doença identificada pela primeira vez no Brasil em março pela mesma equipe do Inpa.
A doença é causada por dois vermes, o Mansonella perstans e o Mansonella ozzardi, que também já foram detectados na Venezuela e na Colômbia e são originários, respectivamente, da África e das Américas Central e do Sul. Os indivíduos analisados estão infectados com pelo menos um dos dois tipos de microfilárias.
“Do total de indivíduos infectados, cerca de 33% possuem os dois tipos de filárias no organismo, o que chamamos de dupla infecção. O problema é que cada filária requer um remédio diferente”, explicou Victor Py-Daniel, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais do Inpa, à Agência Fapesp. “São indivíduos de 22 etnias indígenas infectados pela doença.”
A doença foi detectada durante trabalhos de campo do projeto Caracterização epidemiológica da mansonelose no Alto Rio Negro, coordenado por Py-Daniel e realizado por meio de um convênio entre os ministérios da Ciência e Tecnologia e da Defesa. As pesquisas contam com apoio da Fundação Estadual dos Povos Indígenas (Fepi) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam).
O parasita ataca o sistema linfático e a cavidade abdominal, instalando-se em membranas pericárdicas (do coração) e no sistema nervoso central. Os sintomas são frieza nas pernas, febre intermitente, dores de cabeça, coceira por todo o corpo e dores nas articulações.
Segundo Py-Daniel, em outros trabalhos realizados com indígenas que vivem próximos ao rio Purus e ao Alto Rio Negro, conduzidos por pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a M. ozzardi também tem sido associada ao aparecimento de lesões oculares em crianças indígenas.
“Na maioria das investigações realizadas na África, principalmente por médicos ingleses, para a detecção da possível causa da morte pela doença, os pesquisadores fazem a autópsia do corpo das vítimas. Com isso, a literatura científica registra inúmeros casos de morte por M. perstans”, disse Py-Daniel, que trabalha no Laboratório de Etnoepidemiologia do Inpa.
“Mas, aqui na Amazônia, quando um indivíduo supostamente morre de mansonelose, o corpo é enterrado ou incinerado, seguindo a tradição indígena. Os índios não têm o costume de permitir a autópsia para o estudo das causas da morte. Com isso, ainda não conseguimos saber quantos indivíduos morreram devido à doença”, destacou.
O projeto do Inpa tem o objetivo de verificar a prevalência da mansonelose no Alto Rio Negro e comprovar os reais vetores da doença, uma vez que, em outros países, a doença é transmitida por maruins (Ceratopogonidae). No Brasil, os registros são normalmente de transmissão por borrachudos (Simulium).
“Com todo esse quadro instalado, que já podemos considerar um grave problema de saúde pública, o governo ainda considera a mansonelose uma doença apatogênica. Isto é, ela ainda não é uma doença ‘oficial’ e, por isso, não tem prioridade de tratamento. Mas teses e dissertações realizadas em institutos de pesquisa na região amazônica já comprovaram a patogenicidade dessa doença”, afirmou Py-Daniel.
A doença tem cura e deve ser tratada com ivermectina, droga utilizada contra M. ozzardi, ou com dieticarbamazina, para M. perstans. “Por ainda ser considerada apatogênica, não existe um programa de distribuição de medicamentos para a doença. O Ministério da Saúde distribui gratuitamente medicamentos sob pedido, de acordo com a demanda”, disse Py-Daniel.
(Por Thiago Romero, Agência Fapesp, 12/09/2007)