Atrasada, supersticiosa e até diabólica já foram palavras bastante utilizadas pelos médicos e cientistas para definir a medicina tradicional praticada pelos pajés e parteiras que há milênios garantem a saúde e a sobrevivência dos povos da floresta.
O que pouca gente sabe é que mais de 90% do princípio ativo dos medicamentos que se compram nas farmácias são extraídos de plantas, animais e insetos descobertos pela medicina tradicional e transformados em produtos comerciais pela ciência não-índia.
Médicos, pajés e parteiras tradicionais de comunidades indígenas de todo o Estado estão reunidos desde a manhã de ontem e continuam até a tarde de amanhã o mais amplo debate já realizado com o objetivo de conciliar os princípios das duas ciência de forma que, aprendendo um com o outro, os dois lados sejam beneficiados. É o primeiro Encontro Estadual de Parteiras e Pajés Indígenas.
O evento foi aberto pelo canto de boas-vindas entoado pelas parteiras e pajés do povo shanenawa. Em seguida, a coordenadora da Sitoakore, organização não-governamental que representa as mulheres indígenas do Acre, sul do Amazonas e noroeste de Rondônia, Edna Carlos Brandão, foi enfática: "Este encontro tem como objetivo central o reconhecimento do valor do trabalho de nossos pajés e parteiras que dedicam a vida à medicina tradicional. São eles que, de fato, sempre garantiram a saúde e a sobrevivência de nossas comunidades, embora nem sempre sejam reconhecidos", lamentou a liderança.
"Nossa ciência muitas vezes expressou um pensamento arrogante de que só nosso conhecimento é que importa, que só ele vale. Mas a verdade é que temos muito a aprender com as comunidades indígenas e demais populações tradicionais. Aprendendo juntos, todos seremos beneficiados", explicou o secretário de Estado de Saúde, Osvaldo Leal.
Segundo ele, a valorização dessa cultura médica tradicional praticada pelos pajés e parteiras está ganhando cada vez mais força. Tanto que, durante as conferências municipais de saúde, dez representantes das comunidades indígenas foram eleitos delegados para a conferência estadual e um deles para o fórum nacional, que acontecerá ainda este ano, em Brasília. Ele anunciou também a proposta de criação de uma vaga de representante das comunidades indígenas no Conselho Estadual de Saúde.
Aproveitando a ocasião, Leal conclamou: "Trago a inquietação de quem é responsável pelos serviços de saúde e que reconhece nossas limitações para atender comunidades localizadas em pontos tão distantes e isolados. Reconheço também a importância dos trabalho desses pajés e parteiras, mas acho que esse reconhecimento público não precisar ser o ponto de partida, mas de chegada nesse trabalho de valorização da medicina tradicional."
Já o secretário municipal de Saúde de Rio Branco, médico Eduardo Farias, o qual fará, com eles, nesta terça-feira um amplo debate sobre as perspectivas dos gestores e das políticas públicas de saúde voltadas à saúde indígena, declarou: "Parabenizo todos vocês pelo trabalho que realizam nas aldeias com os pajés, curando e diminuindo o sofrimento das pessoas, e as parteiras na missão de trazer as crianças em segurança para este mundo. Destaco que, em países avançados como a Holanda, 90% das crianças nascem pelas mãos das parteiras. Entendo que nesses 500 anos de choque cultural nós perdemos de aprender muito com as comunidades tradicionais".
Representando o governo do Estado, o assessor para assuntos indígenas, Francisco Pianko, declarou: "O conteúdo deste encontro trata das coisas mais sagradas dos nossos povos e a base do trabalho que tem garantido a sobrevivência de nossos povos durante os tempos. São práticas que efetivamente existem e salvam pessoas, por isso é tão importante saber valorizá-los e respeitá-los porque muito temos a aprender com eles".
Dando à luz na florestaMaria Alves de Souza, ou simplesmente "Manîcá", como é mais conhecida essa parteira do povo Kaxarari, tem 67 anos. Gerou cinco filhos homens e duas mulheres, fora os cinco abortos, dois mortos pelo sarampo e uma de congestão.
Manîcá não sabe quantas crianças já ajudou a trazer ao mundo, mas lembra que no primeiro parto, ainda com apenas dez anos de idade, aparou o próprio irmão.
"Aprendi tudo com eles, o jeito de examinar a barriga, ajeitar a criança que está fora da posição, os remédios. Naquele tempo a gente não tinha tesoura, então usava uma faca feita com a lâmina do pé de milho porque não dá infecção", recorda.
Segundo ela, assim que retirava a criança do ventre da mãe, limpava a boca do bebê com um pano para facilitar a respiração, depois o restante do corpo, enrolava num pano e esperava a mãe desocupar (soltar a placenta), só então media três dedos a partir da barriga e cortava o cordão umbilical.
Mas as coisas nem sempre eram tão simples, conforme relata. "Às vezes a criança estava fora da posição, sentada ou em pé. Tirei seis crianças pelo pé. A mais complicada foi uma que nasceu de bunda, já estava toda roxa, então fiz bastante massagem no peito, chupei e assoprei na boca, depois a coloquei emborcada e ela chorou bastante, agora já tem filhos e netos", afirma. "Não sei quantas crianças já aparei, mas fico muito feliz porque nunca perdi nenhuma delas."
Após o parto, se houver hemorragia Manîcá prepara um chá com as folhas da runstarri. "Com essa erva hemorragia pára na hora, não deixa dar infecção, nem tontura, nem dor. É uma erva fortificante que faz a mulher engordar e ficar forte, é como uma vitamina."
(Por Juracy Xangai,
Página 20, 11/09/2007)