O público presente ao Rosa Rosarum parece mesmo radicalizado, no 8 de agosto. Há pouco, o secretário do Meio-Ambiente, Eduardo Jorge, arrancou aplausos entusiasmados, quando denunciou as posturas das Agências Nacionais — “sempre elas”, frisou – de Energia Elétrica (Aneel) e de Petróleo (ANP). A primeira está inviabilizando a implantação de redes de tróleibus (e sucateando as já existentes), ao autorizar as distribuidoras de eletricidade a cobrar tarifas abusivas pelo fornecimento de energia. A segunda quer continuar adiando a entrada em vigor de resolução que proíbe a venda de óleo diesel com teores ultra-poluentes de enxofre.
Apenas uma intervenção arrancará mais palmas que a do secretário. Animador do Fórum Social de Cidade Ademar, Aírton Goes abre sua fala desnudando uma das zonas de sombra que a mídia projeta sobre os problemas da periferia. “Os jornais estão cheios de notícias sobre o ’apagão aéreo’, e somos solidários com as milhares de pessoas que estão sofrendo seus efeitos. Mas nenhum repórter é deslocado aos terminais de ônibus da cidade, onde o apagão do transporte coletivo ocorre 365 dias por ano – e obriga milhões de paulistanos a formar, todas as manhãs, filas muito mais longas que as dos aeroportos”, diz ele.
A fala é um choque de realidade: há na platéia quem passe mais vezes pelo portão de embarque dos aeroportos que pela catraca dos ônibus urbanos. O final é particularmente ovacionado: “São Paulo só vai mudar quando a periferia mudar”, frisa Aírton.
* * *
Participante entusiasmado do Nossa São Paulo, integrante de seu colegiado de apoio, o economista e ex-vereador Odilon Guedes morou muitos anos na periferia. Reviveu os velhos tempos ao regressar várias vezes à Cidade Ademar, nos últimos tempos, para participar de debates organiazdos pelo movimento. Ele conta: “A experiência mais transformadora deu-se quando apresentamos os estudos que comparam os problemas de cada setor da cidade com os recursos investidos pelo poder público. Revelou-se um abismo que indigna e mobiliza: as regiões mais pobres, menos urbanizadas e mais violentas da cidade são as menos contempladas, no orçamento da Prefeitura, com recursos para conservação de ruas, iluminação, coleta de lixo ou segurança. É como se o Estado fosse um instrumento para preservar indefinidamente as desigualdades”.
A possibilidade de fazer esse trabalho é o que mais motiva Odilon no Nossa São Paulo. “Sempre acreditei que é a sociedade quem transforma suas próprias relações. O movimento está abrindo uma oportunidade que não pode ser perdida. Por enquanto, quem mais participa é a classe média. Mas não despreze a força e a capacidade de produzir surpresas da periferia”.
* * *
Ao falar após Aírton Goes, em 8 de agosto, Oded Grajew dialoga com ele. “Não há cidade sustentável sem justiça social. Por isso, por exemplo, faremos questão de comparar os indicadores gerais de qualidade de vida da cidade com os apurados em cada uma de suas subprefeituras. O resultado revelará a profundidade do abismo social que vivemos e a necessidade de superá-lo".
Como toda obra humana, Nossa São Paulo tem lacunas. Algumas são fruto de comodismo e, possivelmente, fáceis de corrigir. É irritante, por exemplo, ter de aturar, nas apresentações em videoshow, durante as reuniões do movimento, a logomarca da Microsoft, talvez a empresa que mais se bate, no mundo, contra os horizontes abertos pelo trabalho colaborativo. Chega a ser hilário perceber que cada seção do sítio web de Nossa São Paulo traz a marca “©” de “copyright” — como se reproduzir os textos lá estampados pudesse ser interpretado como um ato de pirataria, não um gesto de participação.
Porém, tanto pela carga de velhas relações que envolve, quanto por seu sentido simbólico, um tema destacado — o da composição social do movimento — merece ser enfrentado com medidas pró-ativas.
Setores sociais mais intelectualizados e com acesso à informação são mais sensíveis a mudanças culturais. Ao questionar as relações mantidas há séculos entre governantes e governados, é natural que Nossa São Paulo os atraia mais rapidamente. Mas será possível mudar a cidade tendo como agente principal a parcela da população que se locomove de carro, usa sistemas privados de Saúde e Educação e vive em bairros tão urbanizados quantos os das cidades européias?
Se a resposta for não, há muito o que fazer. Entre as mais de duzentas entidades que já aderiram ao Nossa São Paulo, há apenas três sindicatos. No entanto, diversas organizações do mundo do trabalho têm superado, nos últimos anos, a velha tradição corporativista e atuado como verdadeiros sindicatos cidadãos. Entre outras, as entidades que representam professores, bancários, engenheiros, metroviários [4], trabalhadores em água e saneamento, auditores fiscais vivem profundamente essa transformação. Não seria o caso de um esforço especialmente dirigido para envolvê-las?
Um dos fenômenos culturais mais destacados das últimas duas décadas, no Brasil, é a emergência de uma cultura da periferia. Tem orgulho de si mesma, rejeita a atitude submissa dos antigos “subúrbios”, está antenada com tendências culturais e comportamentais avançadas de todo o mundo. Manifesta-se com vigor no grafite, no rap, no software livre, nos saraus literários, danças de rua, grupos de teatro, produção de vídeos, reivindicação do samba, bibliotecas organizadas em ocupações de prédios públicos. Que tal dialogar com ela?
A oferta de local para reuniões, feita pelo Rosa Rosarum, é certamente bem-vinda. Mas numa metrópole tão marcada pela desigualdade social e pela violência simbólica, não seria correto ao menos alternar o uso de lugares como esse com espaços na periferia e no centro? São candidatos naturais os CEUs e os teatros da prefeitura.
Nenhuma das observações anteriores desmerece o sopro de renovação que Nossa São Paulo pode significar para o conjunto dos movimentos sociais, organizações e associações brasileiras. Mas, como o anti-conformismo parece ser uma das marcas do movimento, vale a pena lembrar a frase emblemática de Ghandi: “devemos ser nós mesmos a mudança que queremos para o mundo” e — por que não? — para Nossa São Paulo.
[4] As greves desastradas e desastrosas de 2007 são uma estranha exceção. Ao longo de anos, os metroviários têm mantido atuação decidida em favor da excelência do serviço que prestam e de um sistema de transporte público de qualidade.
(UOL /
Le Monde Diplomatique, 30/08/2007)