No ato de lançamento do Dia Mundial sem Carros, assentos especiais foram reservados, na primeira fila da platéia do Espaço Rosa Rosarum, ao prefeito Gilberto Kassab, seus secretários e assessores. De lá, eles puderam ouvir Oded Grajew alertar, num momento de sua fala: “se alguém acha que Nossa São Paulo pode fazer parte de um projeto partidário, tire o cavalo da chuva. Nas eleições do próximo ano, não seremos nem contra, nem a favor da reeleição do Kassab, ou da eleição de Marta Suplicy, Geraldo Alckmin, Luiza Erundina ou qualquer outro candidato. Nossa perspectiva é afirmar a soberania da sociedade civil”. Num outro ponto de sua fala, porém, o mesmo Oded frisou: “não negamos a importância do Estado. Nenhuma mudança social relevante será possível sem ação do poder público”.
O que à primeira vista poderia parecer uma contradição é uma das chaves para entender a novidade representada por Nossa São Paulo. O movimento percebe que os direitos sociais — a garantia de transporte público de qualidade, a redução da jornada de trabalho ou a instituição do Orçamento Participativo, digamos — tornam-se efetivos quando, após um processo de mobilização social e mudança de mentalidades, são reconhecidos pelo Estado.
Mas a experiência histórica demonstra que, mais cedo ou mais tarde, essa mobilização se esvai, quando delegada a um partido ou a um líder esclarecido. O Estado é, por natureza, um instrumento de autoridade, de poder sobre. É impossível “conquistá-lo”. É preciso criar permanentemente, a partir da sociedade, novas formas de contra-poder. Em certas circunstâncias, é possível obter, para elas, o apoio ou a neutralidade dos governantes.
Limitar poder do ExecutivoDuas características explicam os espaços importantes e o diálogo de alto nível alcançado por Nossa São Paulo junto à prefeitura da cidade. A mais importante é a própria força política que o movimento reuniu, ao se mostrar capaz de articular um número expressivo de organizações da sociedade, mobilizar inteligência em questões urbanas, conquistar a simpatia de intelectuais e personalidades.
Além disso, há uma particularidade da política institucional paulistana. Vice-prefeito na chapa de José Serra, Gilberto Kassab assumiu o posto quando o titular tornou-se governador do Estado. Adotou algumas medidas ousadas — como o projeto Cidade Limpa, que restringe severamente a mercantilização do espaço visual urbano. Sabe que não é, nas eleições do próximo ano, o candidato prioritário dos partidos conservadores. Precisa, para manter seu espaço político, fazer acenos em outras direções. Nossa São Paulo tirou proveito dessa situação com grande habilidade. Sem apoio da prefeitura, o Dia Mundial sem Carros, por exemplo, teria alcance muito menos amplo. Ao mesmo tempo, declarações como as de Oded asseguram que diálogo nunca significará adesão.
Nem sempre é possível contar com tal conjunção de fatores. Por isso, um dos objetivos estratégicos de Nossa São Paulo é promover mudanças institucionais que reduzam o poder arbitrário dos governantes. Uma primeira ação com tal objetivo ocorreu em 22 de agosto. Um ato na Câmara marcou a apresentação de um projeto de emenda à Lei Orgânica (nome dado às Constituições dos municípios brasileiros) de São Paulo. Redigida a partir da experiência participativa de Bogotá, a emenda estabelece mecanismos inéditos no Brasil para controle do Executivo pela sociedade. Se aprovada, obrigará cada prefeito eleito a apresentar, até 90 dias após a posse, programa detalhado de governo, compatível com sua campanha eleitoral, traduzido em metas e indicadores e desdobrado em propostas para cada uma das 31 subprefeituras da cidade. O projeto também estabelece prestações de contas anuais da prefeitura. Cria-se, pela primeira vez no Brasil, condições mais favoráveis para que uma sociedade mobilizada acompanhe — e influa – nas ações, obras, programas e serviços realizados pelo Executivo.
Em mensagem enviada ao I Fórum Social Mundial, e lida em seu encerramento, o escritor português José Saramago registrou o esvaziamento das democracias contemporâneas. Num tempo marcado pelo surgimento de instituições tecnocráticas como o FMI e a OMC, e pelo poder de chantagem dos mercados financeiros, apontou ele, tais democracias equiparam-se a missas laicas, ou a fachadas. Oferecem às sociedades a ilusão de que são soberanas. Mas permitem que as decisões que realmente importam sejam tomadas em silêncio, por poderes jamais submetidos ao controle cidadão. Não deixa de ser reconfortante perceber sinais de que os cidadãos enxergam, aos poucos, a irrelevância das fachadas e procuram meios para reinventar a democracia.
(UOL /
Le Monde Diplomatique, 30/08/2007)