Questionamento ao automóvel revela: pode haver novos caminhos para desnaturalizar e por em xeque as leis sagradas do mercadoNada, no espaçoso e elegante Rosa Rosarum, faz lembrar os estádios ou salões de assembléias sindicais, onde, no Brasil dos anos 70 e 80, davam-se as grandes batalhas para arrancar do capital parte de seu poder e riqueza. No entanto, durante duas horas e meia, em 8 de agosto, esse parece ser o palco de um novo enfrentamento à ditadura dos mercados. Aqui se traçará o retrato de uma dependência coletiva. Quanto mais o automóvel inflige angústias, sofrimentos e desprazer às sociedades, mais elas se tornam dependentes dele.
A sessão começa com a exibição de "Civilização do automóvel", documentário de Branca Nunes e Thiago Benicchio. Por meio de cenas quotidianas, o filme retrata as distorções causadas por um sistema viário erguido para celebrar o transporte individual. Luciana, como tantos outros moradores da periferia, acorda às 3h40 da manhã para cumprir um trajeto de mais de duas horas e chegar ao emprego sem atraso. Enclausurados em suas cápsulas motorizadas, os cidadãos da classe média perdem contato com a cidade, alternando o ambiente fechado do automóvel com o do condomínio, escritório ou shopping-center.
Secretário-executivo do Instituto de Energia e Meio-ambiente, o engenheiro mecânico André Ferreira entra a seguir. Ele mostra que a máquina de quatro rodas é, destacadamente, o maior responsável pela poluição atmosférica em São Paulo. Responde por 73% do monóxido de carbono respirado, 80% dos hidrocarbonetos, 21% do óxido de enxofre. O ar envenenado provoca problemas respiratórios e cardíacos que reduzem em cerca de 1 ano e meio a expectativa média de vida dos habitantes da cidade. Além disso, um paulistano morre a cada seis horas em virtude de um acidente de trânsito ou atropelamento. São 1,5 mil por ano — mais que o número de soldados norte-americanos mortos anualmente no Iraque.
Aos poucos, o transporte individual torna-se incapaz de satisfazer, inclusive, aos objetivos específicos que justificariam sua existência. A velocidade média do trânsito em São Paulo caiu de já baixos 24,8 km/h, em 1980, para 18 km/h em 2006. No entanto — aqui, o paradoxo — a cidade assiste impotente a todos esses dramas. Ao invés de ocupar espaço, o transporte coletivo de qualidade perde terreno. Em 1967, demonstra Ferreira, ônibus e trens eram responsáveis por 2/3 das viagens motorizadas. Em 2002, e apesar da construção do metrô, o automóvel já representava 53% do total. Enquanto o número de seres humanos em São Paulo cresceu 23%, entre 1976 e os dias de hoje, o de carros particulares aumentou 280%. As imagens que melhor expressam tal mudança são os enormes congestionamentos que se formam todos os dias nas vias periféricas, onde há duas décadas o carro era raridade.
Símbolo do capitalismoNenhuma mercadoria é tão emblemática do capitalismo como o automóvel. Ele expressa um modelo de produção e consumo que promete valorizar o indivíduo, mas oferece a este apenas uma sensação ilusória de liberdade e poder — e um leque medíocre de opções. Como a esmagadora maioria de suas escolhas sociais são mediadas pelo dinheiro, os seres humanos tornam-se incapazes de tomar decisões que superem a própria lógica do cálculo econômico. A depender de nossa capacidade monetária, podemos escolher entre um e outro modelo de automóvel, potência do motor, pacote de acessórios ou tipo de combustível. É muito mais difícil adotar as opções que realmente expressariam nossa individualidade e que permitiriam estabelecer relações criativas com a sociedade. Até que ponto permitir que o planeta continue se aquecendo? Que tipos de indústria são mais adequados para cada região? Como reduzir seu impacto sobre a natureza? Qual o sistema de transportes mais capaz de assegurar mobilidade, ar limpo e espaços livres em nosso município?
"(I)Mobilidade", outro curta-metragem exibido em 8 de agosto, ilustra como as sociedades organizadas dessa forma tendem a seguir um padrão único de "desenvolvimento". Desde o século 20, o automóvel e sua indústria receberam incentivos de praticamente todos os governos brasileiros, e a sociedade assistiu ao fenômeno de forma acrítica. Tudo — do Plano de Avenidas (e concretagem de vales...) do prefeito Prestes Maia, na São Paulo dos anos 40, à implantação das primeiras fábricas de automóveis, sob impulso de Juscelino Kubitschek ou ao "regime automotivo" de subsídios às montadoras, adotado em 1994, por Fernando Henrique Cardoso — era visto como sinal de progresso e oportunidade de lucros e empregos.
A própria esquerda entrou no embalo. Em defesa dos empregos, mas sem questionar seu sentido social, as assembléias metalúrgicas do ABC Paulista apoiaram a redução de impostos sobre os automóveis, nos anos 90. Governada por um Partido Comunista, mas interessada em afirmar seu poder econômico, industrial e político, a China segue o mesmo padrão industrial do Ocidente e copia seus planos urbanísticos.
Nossa São Paulo estará disposto a buscar uma alternativa a esse modelo? Ao encerrar sua intervenção, André Ferreira aponta, como grande alternativa para a cidade, a garantia de transporte público de qualidade. Em outra fala, na mesma sessão, Maurício Broinizi, do Instituto São Paulo Sustentável, lembrou que a busca de um novo modelo não pode limitar-se a um gesto simbólico de 24 horas. Um dos instrumentos em que o movimento aposta, para mobilizar em favor da mudança, é um construir um conjunto de indicadores de qualidade de vida.
Se dados como a evolução do número de automóveis circulantes, da média de quilômetros de congestionamento, do tempo gasto nos deslocamentos, das doenças respiratórias causadas pela poluição, do total de acidentes e mortes, da extensão da malha do metrô, corredores de ônibus e ciclovias estiverem disponíveis para todos, o padrão do transporte individual não se reproduzirá com tanta facilidade. Será possível tornar clara, por exemplo, a importância de reduzir a parcela do Orçamento desviada para pagamento de juros, reaproveitando parte dela na ampliação veloz do metrô.
É uma enorme batalha — ainda mais porque Nossa São Paulo não pretende realizá-la pela via rápida da eleição de um líder esclarecido, mas pela paciente mudança de mentalidades. Mas que teria feito o movimento sentir-se capaz de se propor a tanto?
(UOL /
Le Monde Diplomatique, 30/08/2007)