Depois de inventar o Fórum Social Mundial, Oded Grajew quer inverter as relações entre a sociedade e os poderesOs deuses que zelam pela integridade dos papéis, territórios e ritos da velha política devem ter amanhecido em greve, em 08 de agosto, em São Paulo. Sob a luz tênue que emana dos lustres de cristal e se reflete no piso de mármore, o prefeito Gilberto Kassab (DEM) acaba de discursar. Entre as 300 pessoas que o aplaudem, no Espaço Rosa Rosarum, em Pinheiros, estão integrantes de movimentos sociais (como Airton Goes, do Fórum Social de Cidade Ademar), animadores de ONGs (entre muitas outras, Ísis de Palma, do Instituto Ágora), empresários (a exemplo de Jacques Lewcowicz, da agência de publicidade Lew Lara), profissionais liberais (caso de André Ferreira, do Instituto Energia e Meio-ambiente), militantes de partidos de esquerda (como o economista Odilon Guedes, ex-vereador pelo PT, hoje, empenhado na tentativa de construção do PSOL).
Não se trata, porém, de um espetáculo de cooptação. Nesse caso, é o Estado quem cede. Acompanhado de cinco de seus secretários [1], Kassab comparece a uma reunião do movimento Nossa São Paulo – Outra Cidade. Está aqui para anunciar que parte do equipamento público do município estará, em 22 de setembro, à disposição do Dia Mundial sem Carros, celebrado há anos em centenas de cidades de todo o mundo como crítica cultural a um dos grandes ícones do capitalismo. Cinco corredores viários (quatro deles na periferia) ficarão liberados para corsos ciclísticos. Palcos urbanos serão montados para aulas públicas, debates, danças de rua, psicodramas da cidade e outros eventos. A ponte das Bandeiras servirá de instalação para o Dia do Tietê. Em sinergia com o Dia Mundial sem Carros, a prefeitura promoverá uma Virada Esportiva de 24 horas.
Pouco antes de Kassab, falou um poço de idéias chamado Oded Grajew. Idealizador do Fórum Social Mundial [2] e da campanha contra o trabalho infantil, difusor do conceito de responsabilidade empresarial, ele concebeu, no final do ano passado, o Nossa São Paulo — do qual é a principal referência. Oded maneja as imagens: “A poluição causada pelos automóveis provoca, a cada ano, 4 mil mortes adicionais, por problemas respiratórios, na cidade. É como se caíssem, invisíveis, vinte aviões da TAM sobre São Paulo”. Invisíveis é uma palavra-chave. Oded parece crer que a submissão das sociedades aos mercados e ao Estado é provocada, em grande medida, pela incapacidade de enxergar – e, portanto, de alterar – a maior parte das relações sociais que repetimos todos os dias.
“Nosso movimento tem ambições”, contará ele, dias depois. “É preciso mudar a relação entre os cidadãos e o poder. Se Nossa São Paulo for adiante, seu exemplo poderá mostrar que sempre há escolhas. Não estamos condenados à alienação e a nos angustiar, impotentes, diante do que nos desumaniza”.
Sinais de inovaçãoNossa São Paulo é fruto do ócio. Oded lembra que imaginou a iniciativa nas horas livres que fez questão de abrir em sua agenda, durante um encontro em Amsterdam. É apenas o aspecto folclórico de um conjunto de características muito particulares do movimento. Assim como os Fóruns Sociais, ele baseia-se na horizontalidade e no consenso: dispensa hierarquias, não se propõe a representar seus integrantes, não submete decisões a votação.
Ao mesmo tempo, reivindica uma efetividade que destoa de certa cultura de esquerda. Seminários temáticos para compartilhar informações sobre temas centrais para a cidade (como qualidade do ar ou construções sustentáveis) substituem as longas reuniões sem objetivo preciso, que estimulam cada grupo ou facção a afirmar seus pontos de vista e se diferenciar das demais. Os encontros têm hora para começar e terminar. Organizam-se visitas coletivas a projetos bem-sucedidos de reapropriação das cidades por seus habitantes — dos governos participativos de Bogotá às ocupações de imóveis pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Promovem-se reuniões de diálogos e controvérsias, com secretários da Prefeitura, sobre temas como um novo projeto de Plano Diretor ou caminhos para superar as carências de infra-estrutura nas regiões mais empobrecidas da cidade. Recorre-se a uma espécie de anti-propaganda, que zomba dos valores de consumo difundidos pela publicidade hegemônica, utilizando-se, porém, de algumas de suas técnicas de sensibilização.
As primeiras articulações para lançar Nossa São Paulo deram-se em dezembro de 2006. Oito meses bastaram para produzir alguns resultados surpreendentes. Ao menos duas mil pessoas já freqüentaram alguma atividade promovida pelo movimento. Cerca de um quarto delas participa ativamente dos onze Grupos de Trabalho — que atraem parte significativa das organizações e redes que se dedicam à mobilização social na cidade. Nos encontros desses grupos e nas plenárias gerais, realizadas a cada trinta dias, vive-se, nos últimos tempos, um clima raro no país. Fala-se em possibilidade de mudança, empoderamento da sociedade, viabilidade da política — quando seu centro é deslocado do Estado para as iniciativas sociais autônomas. Há ânimo para inventar o novo; como, por exemplo, um Dia Sem Carros que não se limite a pequenos círculos. Nossa São Paulo pode, ainda, avançar muito — em especial, se houver esforço pró-ativo para alargar decididamente sua composição social, atraindo maior presença dos setores populares. Mas está certamente entre as novidades mais estimulantes e portadoras de futuro que surgiram na cena brasileira, nos últimos anos. Por isso, vale a pena conhecê-lo em mais detalhes.
[1] Eduardo Jorge (Verde e Meio Ambiente), Walter Feldman (Esportes, Recreação e Lazer), Floriano Pesaro (Assistência e Desenvolvimento Social), Frederico Bussinger (Transportes) e Geraldo Vinholi (Trabalho), além do presidente da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), Roberto Scaringella
[2] Um relato rico e preciso sobre o surgimento da idéia do Fórum Social Mundial, redigido por Francisco Whitaker, pode ser lido no sítio web do Fórum Social Mundial
(UOL /
Le Monde Diplomatique, 30/08/2007)