As relações de interdependências entre matriz energética e desenvolvimento econômico são complexas e insuficientemente compreendidas. Para exemplificar esse problema, basta lembrar que, durante o século XX, as energias fósseis, em particular o petróleo, constituíram o principal pilar da oferta mundial de energia primária, por serem abundantes e capazes de múltiplas aplicações. Porém, os custos de prospecção e extração do petróleo, e dos demais combustíveis fósseis, têm ultimamente apresentado intenso aumento; além disso, a distribuição mundial das reservas de petróleo é desigual, concentrando-se no Oriente Médio, um espaço geopolítico bastante instável, o que abre a possibilidade de haver, em médio prazo, efeitos macroeconômicos indesejáveis para os governos. É necessário lembrar ainda a emergência do tema do aquecimento global, que, por mais permeado que esteja com sérias controvérsias científicas, já se presta a estimular uma revisão dos parâmetros das políticas energéticas. Esses fatores são fontes de incertezas e, conseqüentemente, alteram as expectativas quanto ao futuro da matriz energética global.
Nesse contexto, novas tecnologias como as células de hidrogênio só serão de fato implementadas em larga escala quando se mostrarem técnica e economicamente sedutoras; por outro lado, as alternativas já testadas representam soluções críveis para governos e empresários. O programa nuclear, por exemplo, que muitos consideravam ultrapassado, voltou a se tornar uma opção atraente, fazendo com que o número de centrais planejadas ou em construção está crescendo nesses últimos anos. Já a experiência brasileira com etanol oferece uma solução energética capaz de substituir parte da demanda por gasolina. Tendo em visto o lugar dos automóveis em nossa civilização, a centralidade das montadoras na economia global e as perspectivas de diminuição da oferta de petróleo no futuro próximo, não é de se espantar que o etanol se posicione como alternativa energética estratégica, gerando um conjunto de expectativas que esse breve artigo procura abordar a partir da recente onda de investimentos estrangeiros no setor sucroalcooleiro brasileiro.
Desde 2003, ano em que os preços do petróleo começaram a aumentar de modo acentuado, a cadeia de açúcar e álcool brasileira passa por um profundo processo de reestruturação liderado por grupos nacionais e estrangeiros. As formas de entrada dos capitais estrangeiros são variadas e os interesses econômicos envolvidos são heterogêneos. Tradicionais multinacionais do agronegócio, como a francesa Louis Dreyfus, estão reforçando sua participação no setor através de aquisições de usinas brasileiras. Tal estratégia, facilitada pela fragmentação da indústria sucroalcooleira, permite não só que as organizações que já estão no setor reforcem suas posições na indústria, mas também que as empresas que até então não participavam desse negócio entrem rapidamente no setor, transformando-se em atores privilegiados na construção da cadeia global de suprimentos de etanol. Cabe observar que essa estratégia é pouco arriscada, pois, além de essas empresas possuírem competências operacionais no comércio de “commodities”, elas já desenvolveram um bom conhecimento do ambiente de negócio brasileiro. Ademais, os investimentos realizados são simples e de fácil integração às suas áreas de atuação.
Outra estratégia privilegiada pelas firmas multinacionais é o estabelecimento de parcerias com grupos brasileiros . No caso de empresas que já atuam no comércio internacional de açúcar e álcool, a exemplo da parceria entre a “trading” brasileira Crystalsev e a gigante americana Cargill, essa opção permite compartilhar recursos e aumentar a escala com a expectativa de se firmar como atores estratégicos da construção do mercado global de etanol. Diferentemente, grupos estrangeiros ainda não inseridos no tecido agroindustrial brasileiro, como é o caso de “tradings” japonesas ou chinesas, podem preferir esse tipo de estratégia no intuito de minimizar os riscos relacionados à falta de conhecimento das regras e práticas empresariais vigentes no Brasil. Para as usinas brasileiras, por outro lado, alianças com grupos estrangeiros representam uma boa oportunidade de acessar os mercados internacionais. Como diversos países, na Ásia e em outras partes do mundo, ensejam estabelecer medidas para adicionar algumas percentagens de álcool anidro à gasolina, é provável que esse tipo de relações empresariais se intensifique em curto prazo.
Há ainda o caso das empresas de países industrializados que assinaram o protocolo de Kyoto, o acordo internacional sobre redução das emissões dos gases que provocam o efeito estufa: elas provavelmente serão estimuladas a investir na cadeia de etanol brasileiro. É, por exemplo, o caso do Japão, que, através de uma parceria entre o grupo Mitsui e a Petrobras, está buscando garantir uma fonte de suprimento confiável. Um aspecto interessante dessa relação empresarial é que ela enfatiza o desafio logístico do comércio internacional de etanol, uma dimensão crucial para o suprimento global e a credibilidade da cadeia sucroalcooleira brasileira..
Nesse movimento de diversificação dos interesses estrangeiros na cadeia sucroalcooleira brasileira, a entrada de fundos de investimentos representa uma novidade muito recente. Mais do que novos investimentos num setor em plena expansão, as investidas desse tipo de organizações sinalizam uma mudança nas expectativas. Com efeito, quando ícones do mercado financeiro global decidem apostar em ativos que até então ignoravam, ou quando fundos são levantados com facilidade para investir na aquisição de usinas num país em desenvolvimento, isso reflete certa confiança no futuro e nos lucros que essas decisões poderão auferir. É muito provável que a ampla liquidez internacional que marcou os mercados financeiros globais até a crise atual do mercado de “subprime” incentivou esse tipo de operações. Mas só isso não é suficiente para justificar a entrada de fundos de investimentos estrangeiros na cadeia sucroalcooleira brasileira, e não se pode negar que todo esse aporte de capital é um sinal de que as expectativas quanto ao futuro da matriz energética global estão mudando.
Os impactos da crescente presença de firmas multinacionais e interesses financeiros estrangeiros na cadeia sucroalcooleira brasileira ainda carece de análises. No entanto, podemos assinalar alguns aspectos que poderão surgir desse processo. Em primeiro lugar, as exportações de álcool, que deslancharam a partir de 2004, devem se intensificar, ainda que importantes compradores iniciais como os Estados Unidos ou a Índia diminuam suas importações ou novos concorrentes apareçam. A implementação do protocolo de Kyoto, as condições de oferta de petróleo e as possibilidades de adicionar etanol à gasolina sem mudanças tecnológicas específicas são forças suficientes para estimular o crescimento da demanda global por etanol brasileiro.
No plano interno, os investimentos estrangeiros devem acelerar o processo de reestruturação produtiva já em curso. Desde 2005, por exemplo, a recente onda de aquisição já envolveu mais de 20 usinas, das quais mais da metade foram compradas por grupos estrangeiros. Como a indústria sucroalcooleira é ainda bastante fragmentada, o processo de consolidação deve perdurar durante certo tempo. Se por um lado esse processo tende a impulsionar investimentos em usinas de maiores escalas produtivas, a concentração industrial que pode resultar desse processo traz riscos para os consumidores brasileiros. Com efeito, o aumento da escala produtiva e as características do etanol facilitam a implementação de práticas cooperativas e o poder de mercado das empresas. Somada à já concentrada distribuição de combustáveis para automóveis, o processo de consolidação da indústria de etanol pode resultar em preços abusivos e perdas para os consumidores.
A presença crescente de firmas multinacionais na cadeia sucroalcooleira acarreta não somente uma redefinição da relação Estado-economia no que se refere à soberania e à segurança energética do Brasil, mas também modifica os arranjos institucionais e organizacionais que sustentam a cadeia produtiva. A centralidade de padrões internacionais no que tange às práticas ambientais, comerciais e, talvez, trabalhistas deverá se intensificar, adicionando novos parâmetros ao processo de reestruturação em curso. De modo concomitante, esse processo se tornará mais complexo na medida em que a teia de organizações com possibilidade de atuar na elaboração e definição dos padrões se tornará qualitativamente mais heterogênea. Com efeito, a internacionalização da cadeia sucroalcooleira brasileira lida com a crescente presença de firmas transnacionais desejando estabelecer regras capazes de minimizar as incertezas quanto à oferta de etanol no futuro. Além do mais, essa internacionalização incorpora novos atores nos arranjos organizacionais prevalecentes – sejam eles associações de produtores agrícolas estrangeiros, consumidores, meios de comunicação, ONG's internacionais, técnicos de governos estrangeiros e de instituições globais etc. Como seus valores, interesses e crenças não coincidem nem entre si, nem com os atores brasileiros, os jogos políticos, econômicos e sociais que estruturam o ambiente no qual se discutam os atributos dos futuros padrões do comércio internacional de etanol são incertos e marcados por relações de poder assimétricas. Nesse sentido, cabe perguntar se as diferentes organizações que representam atualmente os interesses brasileiros envolvidos na cadeia sucroalcooleira, em particular os sindicatos de trabalhadores rurais, terão capacidades de participar das agendas de discussão que definirão os padrões internacionais e exercer vozes efetivas quando for necessário.
A mudança de expectativas em relação ao futuro da matriz energética global e a maior presença de firmas estrangeiras na cadeia sucroalcooleira brasileira representam novas e poderosas forças que estão redesenhando a dinâmica do mundo agrário no país. A complexidade desse processo mereceria maiores conhecimentos para entender, por exemplo, a difusão da lógica energética no mundo rural, as conseqüências sociais e econômicas dos investimentos estrangeiros em usinas e terras brasileiras ou o papel das políticas públicas na regulação desses processos. Antes de enaltecer o papel estratégico dos heróis do agronegócio sucroalcooleiro ou criticá-los de modo convencional, precisamos entender de fato o que essa mudança de expectativa energética implica para o Brasil.
(Por Georges Flexor,
Agencia Carta Maior, 05/09/2007)
Georges Flexor é professor adjunto do Instituto Multidisciplinar IM/UFRRJ e pesquisador do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura OPPA/CPDA.