Como seres no mundo, nós nos experimentamos como algo, cuja realização não é simplesmente um fato acabado, mas inicialmente apenas uma possibilidade. Somos um desejo de ser, uma meta a ser alcançada, o que nos leva à pergunta: que devemos fazer para ser? Esta pergunta brota do seio de nossa finitude, que implica a possibilidade de fracasso em nossa autoconstrução. Nada nos garante de antemão a conquista de nós mesmos, nosso futuro é aberto e incerto. O que aqui está em jogo nesta pergunta somos nós mesmos seres finitos, desejosos de ser e sempre capazes de levantar a questão da validade de todas as nossas idéias, de nossas tradições, das instituições sociais que configuram nosso mundo e de nossos próprios desejos. Perguntarmo-nos pela validade de nossas metas e dos meios para atingi-las. A própria pergunta nos arranca do aprisionamento aos fatos, faz emergir a esfera de um outro mundo possível, manifestando que o ser humano não é um simples produto do seu mundo, de um passado que o carrega e de um presente em que está inserido, mas ele, ser finito e contingente, eleva-se sobre o mundo fáctico, inclusive sobre si mesmo, pela possibilidade de perguntar, refletir, julgar, avaliar, e, assim, distanciar-se do mundo e tomar posição sobre ele.
Tal atitude, se pretende ser levada a sério, tem pelo menos dois pressupostos: um conhecimento teórico do que é criticado e critérios normativos a partir de onde se pode levantar a pergunta: afinal, isto vale? São muitos os analistas de nossa situação (tomo aqui como exemplo as teses de M. Pochmann) que defendem a posição de que o Brasil tem vivido nos últimos vinte anos uma situação paradoxal o que justifica o lema do Grito dos Excluídos de 2007: Isto não Vale: Queremos Participação no Destino da Nação. Por um lado, houve, por exemplo, diminuição do rendimento do trabalho na renda nacional agravando fortemente a situação do mercado de trabalho, embora a desigualdade da renda pessoal do trabalho tenha sido reduzida. Na realidade, apesar da ausência de um crescimento econômico consistente, houve ampliação do gasto social que explica sua forte contribuição tanto na geração de quase 34% dos postos de trabalho urbanos como da redução do Índice de Gini.O mais interessante neste cenário é que o pagamento de maior valor do salário mínimo permitiu que o rendimento da população mais pobre fosse protegido mesmo tendo perdido poder aquisitivo a renda média dos ocupados. Contudo, a hegemonia do mundo das finanças persiste: em 2005, o pagamento de encargos da dívida pública foi equivalente a 56% do volume de recursos do governo federal comprometidos com a área social. As despesas financeiras reduzem a geração de emprego e contribuem para maior transferência de renda para os segmentos mais ricos da população. Assim, a grande expectativa de mudança permanece praticamente intocável.
A dimensão normativa se radica na consciência da dignidade de todo ser humano e nos direitos que efetivam esta dignidade nas diversas dimensões de seu ser. É a partir da combinação do conhecimento teórico e da dimensão normativa que o Grito dos Excluídos articulou seu objetivo geral: denunciar todas as formas de exclusão e as causas profundas que levam o povo a viver em condições de vida precárias e muitas vezes sem perspectivas de futuro; desmascarar a atual política econômica que privilegia o capital financeiro, o pagamento da dívida e o superávit primário; construir alternativas que tragam esperanças e perspectivas de vida para o povo. Estas alternativas se concretizam na defesa da democracia direta e participativa, do controle social do Estado e das outras instâncias do poder, da reforma agrária e urbana, de uma economia a serviço da vida e que respeite o meio ambiente e a diversidade, da soberania nacional frente à submissão ao capital financeiro internacional. Um gesto inicial fundamental: a realização do Plebiscito Popular pela anulação do leilão da Vale do Rico Doce.
(Por Manfredo Araújo de Oliveira*,
Adital, 29/08/2007)
* Doutor em Filosofia e professor na Universidade Federal do Ceará (UFC)