O título deste artigo remete a outro escrito pelo diretor-geral da FAO, Jacques Diouf, publicado em 15 de agosto de 2007 no jornal "Financial Times" ("Biocombustíveis deveriam beneficiar os pobres, não os ricos"). A frase resume a visão da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação sobre os biocombustíveis e aponta em que direção vai o seu esforço. Um esforço que não pode ser só da FAO.
Por isso, em seu artigo, Diouf convocou a realização de uma conferência mundial para debater a bioenergia. O presidente Lula será um dos muitos chefes de Estado -o esforço deve incluir também autoridades públicas, acadêmicos e toda a sociedade- que irão participar do evento marcado para junho do próximo ano, em Roma (Itália).
Um dos temas centrais do encontro será como disciplinar o mercado internacional de bioenergia. Hoje, cada país faz as próprias regras. Nos Estados Unidos, por exemplo, a produção de álcool de milho recebe mais de US$ 7 bilhões anuais em diversas formas de apoio, como subsídios aos produtores do Meio-Oeste e incentivos fiscais.
A FAO alerta que, continuando assim, no futuro, serão os países desenvolvidos que se beneficiarão da produção de bioenergia e, com barreiras tarifárias e não tarifárias, impedirão o acesso ao mercado de outros países, como o Brasil, capazes de produzir álcool a partir da cana-de-açúcar a custos muito menores, como já fazem hoje com produtos como suco de laranja, carne e algodão.
É o uso subsidiado de grãos para a produção de biocombustível que, literalmente, alimenta as justificadas críticas de que, mantido o sistema protecionista atual, ela não ajudará a reduzir a pobreza. Isso só acontecerá se os pequenos agricultores dos países pobres -especialmente da África e América Latina, que representam mais da metade dos miseráveis do mundo- puderem participar do mercado emergente da agroenergia, produzindo para consumo próprio e exportando aos países desenvolvidos.
A produção do etanol a partir de milho também ameaça a segurança alimentar, já que o grão é parte essencial na dieta de milhões de pessoas.
A tortilha à base de milho com feijão, por exemplo, representa 40% das proteínas consumidas pelos mexicanos. As importações de milho do México e da América Central passam de US$ 1 bilhão por ano -em grande parte, atendidas pela venda subsidiada dos EUA, prática que inibe a produção local e renova a dependência alimentar. Dependência que pode se tornar insegurança alimentar com o aumento de preço e a ameaça de que parte significativa da produção de milho não se destinará mais ao consumo humano, e sim à produção de etanol.
Para que a produção de agroenergia possa beneficiar os pobres, e não só os ricos, Diouf propõe três políticas.
A primeira é reduzir as barreiras contra o etanol. O produto brasileiro feito a partir da cana-de-açúcar, por exemplo, é taxado em US$ 23 o barril pelos Estados Unidos.
A segunda política sugerida busca assegurar que os agricultores familiares possam se organizar em associações e cooperativas para produzir e processar a matéria-prima e comercializar a bioenergia.
Por último, Diouf defende a certificação ambiental da bioenergia. No escritório regional da FAO para a América Latina e Caribe, vinculado à sede da organização em Roma, acreditamos que podemos ir ainda mais longe do que as políticas sugeridas em nível mundial pelo diretor-geral, pedindo, por exemplo, a certificação social do biocombustível. Esse é, na minha opinião, o "calcanhar de Aquiles" do álcool brasileiro.
Segundo dados do Instituto de Economia Agrícola do Estado de São Paulo, um bóia-fria ganha hoje praticamente o mesmo que ganhava no final dos anos 60, antes de existir o Proálcool. A diferença é que, em vez de cortar de duas a três toneladas de cana, hoje ele tem que cortar de oito a dez toneladas -às vezes, até mais. Com isso, o esforço físico do trabalhador, que sempre foi extenuante, aumentou de tal maneira que já levou à morte por exaustão dezenas de bóias-frias no Brasil.
Com as políticas propostas por Diouf, o mundo poderia aumentar o percentual na sua matriz energética de fontes limpas e renováveis de energia, produzidas com respeito ao meio ambiente e com trabalho digno e incluindo os agricultores pobres. E a América Latina pode ter um papel relevante nessa nova matriz. Para cada hectare agricultável na região há outro não utilizado. Área suficiente para conciliar a segurança alimentar e a expansão da agroenergia.
(Por José Graziano da Silva,
Folha de S.Paulo, 31/08/2007)