Antônio, índio guarani do Espírito Santo, fez uma dança com os 300 presentes do 8º Encontro nacional da Rede TALHER de Educação Cidadã, cantando em sua língua. Fez uma pausa e perguntou: "Pra que serve a terra?" Surgiram várias respostas, do tipo ‘pra gente plantar", "pra gente ver a beleza". Ele, simplesmente, disse: "A terra serve para caminhar. Caminhando, a gente atira a semente e planta".
Pensando bem e olhando as coisas como elas são e sem pretensas filosofices, a terra é pra isso mesmo: pra caminhar. Sem pormos os pés no chão, sem conseguirmos nos mover, não há como fazer o resto. E caminhando, plantamos. Caminhando, admiramos suas belezas. Caminhando, encontramos o outro, a outra. Caminhando, reconhecemos a natureza em sua diversidade.
Por isso, para o indígena não há cercas, não há fronteiras. O mesmo Antônio disse num debate de trabalho de grupo: "Isso de países demarcados, onde você pondo os pés de um lado de uma linha imaginária é brasileiro, e do outro é boliviano ou argentino, é criação do homem. Pra nós isso não existe. A terra é de todos, todos a usufruem".
Se a terra é pra caminhar, ela não tem proprietário, nem o que há sobre ela pode ser apropriado individualmente. Afinal, hoje você caminha num lugar, numa ponta da floresta ou da planície, amanhã você atravessa um rio, depois você sobe uma montanha e sabe-se lá quando vai voltar a estes lugares. Não há cercas, não há titulação. Nada há que seja só meu, que ninguém mais possa usufruir ou ter acesso.
Assim, a terra não serve para acumular riqueza e hectare, nem se precisa dividi-la em partes ou reparti-la em pedaços, pra que uns só caminhem num dos pedaços, outros não possam chegar perto do riacho, e outros ainda não usufruam da água ou do banho do rio.
Outro dia em Conceição da Barra, Espírito Santo, ao fazermos uma mística e caminhada de uma praça até o local do Encontro do TALHER-ES, os índios guaranis explicaram que em outras épocas caminhavam 60, 80 dias sem parar rumo à Terra Sem Males. Há um sentido para caminhar, uma busca do novo e da esperança.
Nestes tempos em que tudo é apropriado, em que tudo vira capital, valores, relações, sentimentos, prazer, plantas, água e o verde, é mais que hora de se perguntar pra que serve a terra. Mas não é só a terra. Tem muito a ver também com nossa vida. Somos impregnados, cada um individualmente e todos coletivamente, pelo consumismo reinante, pelas montanhas de lixo desnecessário que produzimos, pelo levar vantagem a qualquer preço, pelo jeitinho pouco ortodoxo para enganar os outros, pelas mentiras que pregamos nas relações de cada dia, pela necessidade de ‘aparecer’, pela falta cuidado com quem nos cerca, pela imediatez de dar respostas ainda que fabricadas, pelo artificialismo do que fazemos e dos gestos diários que somos ‘obrigados’ a fazer, pelo vazio de muitas palavras e ações.
O guarani Antonio é viajado, fala sobre qualquer assunto de política, economia, biodiversidade. Mas não perdeu o sentido básico e vital de estar ligado a um povo e a uma comunidade. Luta por ela, defende-a, exalta seus valores com a dignidade de um povo que não se deixa esmagar nem pisotear sua cultura. Segue caminhando sobre a terra e lutando pela Terra Prometida, que deve ser de todos e todas que ainda sonham e acreditam na utopia.
(Por Selvino Heck*,
Adital, 23/08/2007)
* Assessor Especial do Presidente da República. Fundador e Coord. do Movimento Fé e Política