Cercadas pela expansão agropecuária e indiferença do Estado, comunidades indígenas da província argentina de Chaco encontram dificuldades para ter acesso à água, à alimentação e aos medicamentos naturais e, assim, caminham para a extinção. As imagens de corpos adultos degradados pela fome e a tuberculose no município de Villa Rio Bermejito, noroeste da província, são apenas o epílogo de uma longa história de abandono e reclamações não ouvidas de indígenas toba, wichi e mocoví do Chaco, 700 quilômetros ao norte de Buenos Aires.
Mais de um ano após uma greve de fome de um mês protagonizada por indígenas em protesto por graves irregularidades na concessão de terras fiscais, o Centro de Estudos e Pesquisa Social Nelson Mandela denunciou que 13 membros dessas comunidades morreram nos últimos meses. As mortes foram conseqüência de desnutrição aguda associada, na maioria dos casos, com tuberculose e outras enfermidades como parasitose, mal de Chagas e câncer. “Estamos diante de um desastre humanitário”, disse à IPS Rolando Núñez, diretor do Centro Mandela.
A entidade afirmou que um estudo feito pelo governo nacional em Villa Rio Bermejito detectou este mês 92 casos de desnutrição de diversos graus. O governo da província, da opositora União Cívica Radical, considera que nas denúncias “há intenção política” por parte de Buenos Aires. “Nunca escondemos a fome, a miséria nem a pobreza”, defende-se o governador Roy Nikisch. “Sabemos perfeitamente que por sua própria cultura e idiossincrasia os indígenas não deixam que o Estado os atenda corretamente, não usam os remédios e rejeitam os tratamentos”, afirmou Nikisch.
Em um informe apresentado este mês perante a Suprema Corte de Justiça da Nação, o Centro Mandela alertou que “a subtração maciça de terras fiscais e o desmatamento irracional de floresta nativa” estão provocando a enfermidade e morte de populações “famélicas” no Chaco. “Como síntese trágica da sistemática degradação institucional, política, social, econômica e educativa da província, estão as comunidades indígenas que vivem na extrema pobreza, sob um regime de fome perpétuo e contínuo, seguido de enfermidades próprias de uma situação de desastre”, diz a denúncia.
Orlando Charole, presidente do Instituto do Aborígine do Chaco (Idach), coloca o problema em uma perspectiva histórica. “Por séculos nós indígenas sofremos o avassalamento integral em todo o continente com um impacto destruidor sobre centenas de povos que foram arrasados”, disse à IPS. Entretanto, as comunidades que se aferraram à sua organização tradicional e aos seus costumes conseguiram sobreviver, acrescentou. O que está em jogo é o território, base de seu modo de vida. “Um povo não pode viver sem território”, ressaltou Charole, que liderou os protestos pelo direito à terra em 2006.
“Onde podemos viver segundo nossas crenças? Onde caçar, pescar, colher alimentos? Com que fazer suco quando não há água? Onde obteremos nossos remédios?”, disse Charole, de origem toba, que representa mais de 600 indígenas do Chaco, quase 6% da população da província, de 980 mil pessoas. Dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos mostram que na Argentina há pouco mais de 600 mil indígenas descendentes de 25 povos originários. De acordo com denúncias de organizações sociais e ambientalistas, o desmatamento está causando estragos entre os que vivem mais afastados dos centros urbanos.
A Fundação para a Defesa do Meio Ambiente denuncia desde 2004 a lenta extinção dos mbya guaranis na província de Misiones. A filial argentina do Greenpeace afirma que o corte de floresta nativa para cultivo de soja em Salta, no noroeste, destrói o habitat de comunidades wichí. “Cortam a floresta, colocam cercas e nós somos estranhos em nossa própria terra”, resumiu Charole a respeito do Chaco. O Estado “parece ter um escudo” para rechaçar nossas reclamações, afirmou. “O Ministério de Desenvolvimento Social manda alimentos, mas isso só resolve no momento. O que precisamos é de terra, educação, saúde”, ressaltou.
Charole se referia à decisão ministerial de enviar, desde maio e a cada dois meses, uma cesta com 30 quilos de alimentos para cada uma das duas mil famílias da área mais vulneráveis, que incluem 10 quilos de farinha, três de macarrão, três de arroz, cinco de leite em pó, dois de açúcar e latas de picadinho de carne e pêssego. “É uma quantidade suficiente para uma alimentação modesta durante 15 dias”, afirmou Núñez, do Centro Mandela. Para conseguir uma dieta balanceada, os moradores deveriam complementar com animais de caça e frutos da montanha, mas o desmatamento da área os isola e lhes tira a possibilidade de obter estes recursos.
Segundo a Direção Nacional de Florestas, Chaco é a terceira das 23 províncias argentinas em porcentagem de terras desmatadas nos últimos anos, devido ao avanço da fronteira agropecuária. O milho e a soja são os cultivos prediletos em detrimento da floresta ou de outras plantações tradicionais, como o algodão. Entretanto, senadores de Chaco e outras províncias afetadas pelo desmatamento negam-se a aprovar um projeto de lei sobre florestas já sancionado pela câmara baixa que prevê suspensão do desmatamento, ordenamento territorial e emissão de autorizações para cortar florestas somente em casos que não afetem o meio ambiente e suas comunidades.
Nos últimos 10 anos, a superfície de Chaco cultivada com algodão passou de 700 mil para 100 mil hectares, e as possibilidades que os indígenas tinham de se empregarem como diaristas na colheita diminuíram na mesma proporção. A falta de água também constitui um problema grave. O Centro Mandela afirma que próximo ao município de Miraflores, no Chaco, na localidade de Techat, populações whicí sobrevivem condições “totalmente desfavoráveis para a vida humana”. Em 1996, as autoridades instalaram ali uma cisterna para bombear água que funcionava com energia solar. Mas depois do ato inaugural, levaram embora o motor.
Assim, os moradores estão condenados a beber água de charcos, represas e lagoas, e alguns se acostumaram a não beber até à desidratação, afirma a o Centro Mandela. A única sala de primeiros socorros existentes na localidade está totalmente desabastecida e sem pessoal. Charole afirma que é necessária uma política do Estado nacional indígena que permita planejar o acesso à terra, planos de saúde que contemplem o saber da medicina tradicional e incorporação de professores bilíngües nas escolas. “Não se soluciona o problema com duas ou três cestas de alimentos”, ressaltou.
Em junho de 2006, os indígenas de Chaco protestaram com uma marcha de três mil pessoas desde Villa Rio Bermejito até Resistencia, capital provincial situada a mais de 400 quilômetros. Diante da negativa das autoridades da província em dialogar, os manifestantes ocuparam a sede do governo e ali iniciaram uma greve de fome. A medida, adotada por uma dezena de indígenas, durou 32 dias e culminou com a saúde dessas pessoas gravemente deteriorada e uma promessa de soluções que não chegaram. Na oportunidade, o Centro Mandela afirmara que dos 3,9 milhões de hectares de terras fiscais que havia na província em 1995 restam pouco mais de 660 mil hectares.
A lei provincial estabelece que essas terras devem ser cedidas a comunidades indígenas ou a pequenos produtores em áreas familiares entre 650 e 1.200 hectares cada, acompanhadas de políticas de fomento à atividade produtiva. Mas nada disso ocorreu. A entidade afirmou que as concessões beneficiaram grandes plantadores de soja e outros cultivos, alguns deles radicados em outras províncias, e que os lotes cedidos tinham mais de 10 mil hectares cada um. Mais de um ano depois, o resultado é mais fome, doença e morte.
(Por Marcela Valente, IPS, 28/08/2007)