A origem de Cubatão, litoral do Estado de São Paulo, está associada a dois fatores geológicos bastante distintos. O primeiro, a enorme muralha da Serra do Mar, impondo desde os tempos coloniais imensas dificuldades para a circulação de bens e indivíduos entre o Planalto de Piratininga e o Porto de Santos, aqui incluindo os núcleos urbanos de Santos e São Vicente.
O segundo fator refere-se à dificuldade natural de, a partir do porto e dos primeiros núcleos urbanos da Baixada, atingir-se o “pé-de-serra”, dada a profusão de canais, rios, e manguezais que separam esses dois destinos.
Essa ordem de dificuldades obrigou por todo o período colonial que a ligação entre o pé-de-serra e o Porto de Santos só pudesse ser vencida através de barcos, o que envolvia pesados custos com pagamento de taxas de pedágio e aluguel de armazéns e barcos, como com os enormes riscos das marés, do mau tempo, do tombamento ou do encalhe das embarcações, da perda das cargas por seu afundamento ou, especialmente no caso do açúcar, por seu molhamento.
O porto de transbordo ficava à margem esquerda do rio Cubatão, ao longo da qual deslocou-se de acordo com a seqüência dos diferentes caminhos que procuravam, no decorrer do tempo, melhorar as condições de subida da serra.
Foram justamente esses pequenos portos, à margem esquerda do Rio Cubatão, pontos de transbordo de homens e mercadorias dos barcos para os ombros de escravos índios e negros e lombos de mulas, abrigando operações inversas para os que, do Planalto demandavam o litoral, que deram origem aos primeiros núcleos urbanos que, com o passar dos tempos, vieram a dar origem à cidade de Cubatão.
Donde por muito tempo, Cubatão não teve uma vida própria. Era um ponto obrigatório de passagem, apenas um local de transbordo, pagamento de taxas e registro de trânsito de homens e mercadorias, operação comercial inicialmente explorada pelos jesuítas, e após a expulsão desses de Portugal e suas colônias em 1759, pela própria Coroa ou por particulares arrendatários.
Essa função perdurou por mais de 300 anos, e só viria a se alterar com a inauguração do Aterrado de Cubatão em 1827, obra que possibilitou o transporte contínuo por terra do Porto de Santos ao pé da serra, e daí a São Paulo, sobre ombros de escravos e lombos de mulas, sem necessidade de nenhuma operação de transbordo de mercadorias.
Com o grande aumento de transporte de carga, especialmente o açúcar, possibilitado pela Calçada do Lorena, inaugurada em 1792, Cubatão apresenta um considerável surto de desenvolvimento. Cresce enormemente o movimento e a importância do Porto Geral de Cubatão, o que incluiu a ocupação também da margem direita do Rio Cubatão por uma série de instalações e serviços como barracões, ranchos, estalagens, armazéns, oficinas de barcos, pastagens e trato de muares, etc.
A construção de um aterro e um conjunto de pequenas pontes que livrasse o transporte de mercadorias do trajeto Porto de Santos – pé-de-serra da necessidade compulsória do uso de embarcações e operações de transbordo, com todos seus custos e riscos envolvidos, velha e insistente reivindicação dos comerciantes de São Paulo e Santos -, impunha-se agora como empreendimento inadiável.
Em 1798, como fruto de uma campanha liderada pelo Capitão-general Antônio Manoel de Melo Castro e Mendonça, é iniciada a construção da tão desejada obra, no entanto, logo mais à frente abandonada dadas as enormes dificuldades técnicas e financeiras envolvidas, uma vez que o aterro, sob a tecnologia da época, implicava em cestos de terra e pedra transportados na cabeça de escravos sob as mais perigosas e insalubres condições físicas e ambientais dos mangues da Baixada. Calor úmido abafado e insuportável, mosquitos, animais peçonhentos, doenças próprias do ambiente, extenuante esforço físico, constituíram os fatores que afugentavam empregados assalariados e obrigavam que o empreendimento fosse essencialmente realizado pela mão-de-obra escrava.
Somente bem mais tarde, no ano de 1827, durante a administração de Lucas Antônio Monteiro de Barros, Presidente da Província de São Paulo, e sob o comando do notável engenheiro Daniel Pedro Muller, o Aterrado foi concluído, constituindo-se de 13km de aterro e 4 pontes, coincidente hoje com o que seria o eixo longitudinal da histórica Avenida Nove de Abril. Uma obra extremamente penosa e tecnicamente arrojada para a tecnologia da época, à qual, a vida humana de escravos e trabalhadores contratados pagou altíssimo preço.
Constituiu-se o Aterrado em uma das primeiras grandes obras da engenharia viária brasileira construída sobre solos moles. No caso, essencialmente camadas de argilas marinhas e continentais subaquáticas com baixíssima capacidade de sustentação. Pela tecnologia disponível na época, o Aterrado foi construído com o simples lançamento de solo e pedras provindos das bordas da Serra e de morros isolados. É provável que esse material de empréstimo fosse lançado sobre o terreno estivado, ou seja, coberto por paus trançados, de forma a melhor distribuir as pressões do aterro sobre os solos moles. Os serviços de reposição de material por afundamento brusco e recalques lentos do aterro, e mesmo por destruição de bordas pelas marés e rios, mostraram-se de dimensão tão inesperada para os construtores que as lidas com a reconstrução de aterro e pontes assumiram necessidade de gastos comparáveis à própria construção da tão necessária obra.
Como ordem de grandeza da dimensão do cruel e insano trabalho humano aí alocado, pode-se calcular que o Aterrado, entre construção e manutenção, tenha consumido em seus trechos do pé-de-serra até a margem esquerda do rio Cubatão e da margem direita desse rio até proximidades do Porto de Santos, algo como 300 mil metros cúbicos de solo e pedras, o que resultaria em 10 milhões de cestos de solo e pedra individualmente carregados e lançados por ombros escravos.
Com a inauguração do Aterrado, Cubatão entra em um período de decadência pela perda de suas funções portuárias e alfandegárias. Cubatão ainda reteve as funções de posto de registro de mercadorias e pessoas que circulavam entre o planalto e o Porto de Santos, mantendo também as naturais instalações de um ponto de pé-de-serra, com seus armazéns, depósitos, currais e pastos para mulas, oficinas de carroções, etc. No entanto, a cidade só vai realmente recuperar seu ímpeto de desenvolvimento nas décadas de 20 e 40 do séc. XX, quando da instalação da Usina hidrelétrica Henry Borden, da Companhia Santista de Papel, da construção da Via Anchieta, culminando com a instalação, já na década de 50, da Refinaria Presidente Bernardes e da siderúrgica COSIPA. Estava enfim aberta a via que conduziria Cubatão a se tornar, em pouco tempo, um dos mais importantes pólos industriais (especialmente petroquímico) do país.
(Por Álvaro Rodrigues dos Santos(*),
AmbienteBrasil, 22/08/2007)
* É geólogo, autor dos livros "Geologia de Engenharia: Conceitos,
Método e Prática", "A Grande Barreira da Serra do Mar" e "Cubatão";
consultor em Geologia de Engenharia e Geotecnia.
santosalvaro@uol.com.br