Durante os últimos anos, tornou-se quase uma rotina. As primeiras páginas dos jornais dos primeiros dias do mês de agosto têm estampado de forma sistemática os extraordinários volumes dos lucros obtidos pelos bancos e pelas instituições financeiras em nosso País relativamente ao semestre que acabara de se encerrar. Também, não é para menos. Com a política econômica assentada na obtenção de superávit primário gigantesco e na manutenção de taxas de juros em patamares estratosféricos, só faltava mesmo a presença de um Henrique Meirelles no comando da economia, sentado na cadeira da Presidência do Banco Central, para coroar o êxito do dinheiro fácil.
Aliás, o interessante é registrar o fato pouco comentado: o “cupañero” Meirelles é o verdadeiro “imexível” do governo Lula desde a sua posse em 2003. Daquela foto já um tanto amarelada da antiga primeira equipe ministerial, de quase cinco anos atrás, o único que permanece no posto de confiança absoluta do Presidente da República é o ex-presidente internacional do Bank of Boston, que foi generosamente guindado à condição de Ministro, graças àquela famosa Medida Provisória n° 207, de agosto de 2004. Por meio da MP, aquele que trocara o mandato de deputado federal eleito pelo PSDB de GO pelo primeiro posto no BACEN passaria a estar juridicamente blindado e imune aos processos em curso na Justiça contra ele.
Até o início da semana passada, antes da eclosão de mais uma evidência da crise anunciada do sistema financeiro internacional, o noticiário parecia uma espécie de Fla x Flu. O destaque era focado em um suposto embate entre Bradescão e Itauzão, para saber quem estaria liderando a disputa pelo primeiro lugar nessa performance que “nunca antes na história desse País” se observava... Os analistas se esmeravam em buscar argumentos para o seu favorito, ora considerando o lucro líquido sem levar em conta as chamadas “operações extraordinárias”, ora apenas acentuando o lucro líquido obtido no semestre, ou ainda somente o lucro líquido no segundo trimestre, e por aí vai.
O fato concreto é que dessa vez o lucro da duplinha dinâmica do setor bancário privado superava a cifra de R$ 8 bilhões, numa conta aproximada de R$ 4 bi para cada um. Nada mal para um período de 6 meses. Se considerarmos os dias úteis, uma jornada de 8 horas de trabalho, cada um dos dois grandes conseguiu a façanha de obter um lucro médio de quase R$ 1.000 por segundo nessa metade do ano !! Também com um Estado tão bonzinho quanto este, proporcionando um ganho financeiro tão elevado e com tamanha segurança, tudo fica mais fácil...
Os mais apressados e os menos tolerantes já estão se perguntando: sim, mas o que é que isso tudo tem a ver com a Cia.Vale do Rio do Doce? Calma, calma, vamos chegando lá. Todos nos lembramos das vendas das empresas estatais levadas a cabo antes e, principalmente, ao longo do governo FHC. Não por acaso tal processo foi chamado de privataria. Em poucos anos foram transferidos para o setor privado, a custos reduzidíssimos, décadas de patrimônio construído e acumulado no interior do Estado brasileiro. Sob a pressão do esmagamento ideológico do ideário neoliberal e debaixo da enorme pressão política, a sociedade foi obrigada a engolir a ladainha de que a transferência acabaria com a dívida pública e ofereceria maior competitividade à economia brasileira, cujos ganhos seriam repartidos por todos.
A lista dos setores atingidos é longa: siderurgia, telecomunicações, transportes, saneamento, portos, bancos estaduais, energia elétrica, entre outros. Ao que tudo indica, por falta de tempo e de fôlego, felizmente escaparam dos abutres algumas peças importantes, como a Petrobrás, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e o BNDES. A imagem simbólica do “bater de martelo” nos momentos dos leilões é impossível de ser apagada da memória política do País. A violência da transferência da propriedade pública para as mãos de especuladores privados em uma singela assinatura de documentos é aviltante.
E uma dessas transações ganha ainda maior relevo, também pelo simbolismo da operação. Trata-se da privatização CVRD. O preço da venda realizada em maio de 1997 foi R$ 3,3 bilhões (por volta de US$ 3 bi), para um patrimônio avaliado à época em mais de R$ 80 bi. Um grande consórcio foi montado para arrebatar o leilão, com participação de diversos agentes e setores empresariais. Dentre eles, destaca-se a participação do grupo Bradesco. Aliás, diga-se de passagem, sendo o mesmo um dos agentes que participaram da montagem do próprio edital da privatização. A engenharia financeira dos novos grupos proprietários é complexa, mas a hegemonia dos interesses do Bradesco, aos poucos, vai sendo observada.
Em 2001, enfim, é nomeado Roger Agnelli como presidente da empresa privatizada. Empresário bastante conhecido no circuito financeiro, ele sempre foi visto como homem de absoluta confiança do esquema de Lázaro Brandão, do Bradesco. Aliás, não foi por outra razão que saiu de uma carreira de 20 anos no grupo financeiro direto para a Presidência da Vale, onde continua até hoje. Em entrevista concedida à imprensa no final do ano passado, quando perguntado se aceitaria um eventual retorno à matriz, Agnelli respondeu: “O Bradesco tem um time formado, forte. Eles não têm problema de sucessão. Aqui na Vale, estou feliz e de certa forma perto dos meus amigos do Bradesco.”
Mais à frente, provocado se aceitaria trabalhar num banco concorrente, saiu-se com uma de que na vida “...a gente tem algumas filosofias e tenta segui-las. Eu gosto do Bradesco. Acho um banco fantástico, com uma cultura fantástica também. Eu teria dificuldade de adaptação a outra cultura.”
E já que falamos de lucros do setor financeiro, falemos um pouco dos ganhos recentes da Vale. No primeiro semestre de 2006, registrou lucro líquido de US$ 3,3 bi. No primeiro semestre de 2007, esse valor saltou para o recorde histórico de US$ 6,3 bi. Hoje em dia, a CVRD é uma das maiores empresas do mundo, com grande potencial de crescimento. Seu patrimônio apresentava um ativo total de US$ 11 bi em 2003 e saltou para US$ 60 bi em 2006. No final do ano passado, o valor de mercado de suas ações havia atingido o recorde de US$ 70 bilhões. A Vale opera em diversas áreas e setores como mineração, siderurgia, transportes, energia elétrica, dentre tantos outros, e marca presença em mais de 30 países.
Alguns ainda tentam vender a versão de que tudo isso só foi possível em função da privatização da empresa, graças à tão propalada maior eficiência do setor privado em comparação ao setor público. É inegável que há muito a fazer no que se refere a elevar o potencial gerencial das instituições do Estado. Porém, parece evidente que os ganhos aqui citados guardam profunda relação com as particularidades do mercado em que a Vale atua e com o presente que foi oferecido aos novos proprietários, quando da privatização.
Além disso, e em especial, deve-se à surpreendente elevação dos preços, ocorrido nos últimos anos, no mercado internacional de bens chamados “commodities”, como petróleo, minérios e agronegócios. Estão aí os principais elementos para compreender tal crescimento. Caso contrário, como explicar o também espetacular desempenho de uma empresa estatal como a Petrobrás, ainda mais destacado do que a própria Vale? Entre outras razões, pelo fato de que ela também se beneficia de uma conjuntura favorável.
Enfim, tudo isso para conferir um pouco mais de conteúdo e argumentação ao debate atual sobre a revisão da privatização ilegal e ilegítima realizada há 10 anos atrás. O movimento está nas ruas. Há várias ações judiciais correndo na Justiça com chances reais de vitória, exigindo a anulação da venda e o retorno da propriedade da empresa para a União. No entanto, o movimento não será fácil. Por exemplo, quem visitar a página da CVRD na internet, encontrará a mensagem do Presidente do Conselho de Administração da empresa, dirigida aos seus acionistas. O texto é assinado pelo ex-sindicalista da CUT, Sérgio Rosa, atual Presidente da PREVI, o fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil. Seria interessante saber o que ele e os demais dirigentes dos fundos de pensão que participam do capital da Vale pensam a respeito.
Preparemo-nos! Os (de)formadores de opinião de plantão já devem estar começando a preparar seus punhos e suas plumas para massacrar a população com os argumentos de sempre. Já os conhecemos de cor e salteado. As pérolas virão mais ou menos na linha do seguinte: “Os defensores da anulação são os mesmos jurássicos de sempre! São os defensores do chavismo e do populismo desse lado da fronteira! A credibilidade internacional de nosso País foi conquistada justamente depois da privatização e dos planos de estabilização – ou seja, não podemos voltar atrás! A governabilidade será afetada com a fuga de capitais e a instabilidade econômica estará de retorno!” E muito mais blábláblá!
Durante a primeira semana de setembro, um conjunto amplo de entidades do movimento social estará organizando um plebiscito para que a população se manifeste a respeito da anulação do leilão de venda da Vale (www.avaleenossa.org.br). Seria importante que o PT viesse a público se manifestar sobre o assunto, a exemplo do que sempre fez na sua história, e como utilizou há pouco, durante a campanha eleitoral contra Geraldo Alckmim no ano passado. Além disso, qual será o comportamento de Lula a respeito do tema? Infelizmente, tenho para mim que ele vai sair mais uma vez pela tangente, dizendo que a Justiça é autônoma e soberana para decidir e que não cabe a ele se manifestar... No entanto, uma série crescente de lideranças políticas no mundo já se aperceberam da verdadeira canoa furada que foi a adoção do ideário proposto pelo Consenso de Washington. A questão do desenvolvimentismo e das políticas públicas começa a voltar à tona como alternativa ao neoliberalismo.
Por exemplo, nossos vizinhos Kirchner, Morales e Chavez não esconderam sua opção nesses últimos anos. Pelo contrário, tomaram iniciativas para viabilizar o retorno do Estado em setores considerados estratégicos para seus respectivos países.
(Por Paulo Kliass,
Agencia Carta Maior, 21/08/2007)
Paulo Kliass é doutor em Economia e membro da carreira federal “Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental”. Atualmente cumpre programa de pós-doutorado na Université de Paris 13, França.