Ativistas do Greenpeace acompanhados por dois jornalistas franceses tiveram no início desta semana a real dimensão do que acontece na Amazônia quando o Estado está ausente. A idéia era pousar em Juína, maior cidade do noroeste de Mato Grosso, para fazer um sobrevôo e observar as causas persistentes do desmatamento, que notadamente diminuiu no estado de dois anos para cá. Iriam levar também índios da etnia Enawenê Nawê para visualizar seu território e a área para onde pretendem ampliá-lo, conhecida como gleba Rio Preto. Isso foi o suficiente para mobilizar toda a sociedade juinense, inclusive a polícia, que manteve os visitantes como reféns por 24 horas e os expulsou da cidade antes que houvesse mortes.
De acordo com o Greenpeace, poucas horas depois de aportarem em Juína, a população liderada por políticos e empresários locais impediu que os ativistas deixassem o hotel em que se hospedavam. O estabelecimento, que também presta serviços de acesso a internet ao público, subitamente cortou toda comunicação, inclusive telefones fixos. Paulo Adário, coordenador da campanha Amazônia do Greenpeace, contou que ao solicitar providências da polícia para que ao menos eles pudessem sair do hotel para se alimentarem, ouviu do coronel uma proposta no mínimo absurda. “Vocês não precisam sair, nós levamos a comida até o hotel”. Os índios e indigenistas da Operação Amazônia Nativa (Opan) que trabalham com a etnia foram ameaçados de morte e de serem “arrastados por uma caminhonete pelas ruas para servir de exemplo”, segundo descreveu um integrante da organização que desenvolve trabalho de mais de 20 anos com os Enawenê Nawê.
Sitiada, a equipe foi obrigada a se dirigir à câmara municipal de vereadores para uma sessão extraordinária que durou seis horas, tudo registrado em vídeo por um cinegrafista do Greenpeace e por um fotógrafo que acabou sendo agredido. Segundo Adário, estavam lá todos os vereadores da cidade, representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), associação comercial, de 40 a 50 empresários, polícia militar e o prefeito de Juína, Hilton Campos, topógrafo que no início da década de 80 foi um dos responsáveis pela colonização da região, e que hoje ostenta riqueza e prestígio graças a seus negócios de legalidade duvidosa na área de garimpagem e pecuária.
Foi da boca do prefeito e de todos os outros presentes à sessão que Adário ouviu claramente que o Greenpeace e a Opan não eram bem-vindos em Juína e que estavam proibidos de se dirigir à Terra Indígena Enawenê Nawê. “Escutamos do prefeito e de todos os outros que em Juína não existe Constituição, nem direito de ir e vir ou liberdade de imprensa”, anunciou Adário nesta quarta-feira em Cuiabá, durante um seminário do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), diante de pesquisadores, ambientalistas, empresários e representantes de sindicatos rurais de Mato Grosso. Na manhã da última terça-feira, os jornalistas estrangeiros, integrantes da Opan e do Greenpeace foram seguidos até o aeroporto por 30 caminhonetes de luxo pertencentes aos proprietários rurais de Juína, que, com muita barulheira, comemoraram a expulsão do grupo.
Diante da denúncia, Luis Henrique Daldegan, secretário estadual de meio ambiente, se comprometeu a verificar o que se passou em Juína e pediu desculpas pelo ocorrido. “Gostaríamos que os repórteres franceses fizessem uma reportagem positiva sobre Mato Grosso, eles são bem vindos aqui”, disse o secretário. “Temos que ter tranqüilidade para que a gente possa discutir essa questão do rio Negro (sic), pois não concordamos com esse tipo de ação”, afirmou Daldegan, referindo-se à região do rio Preto, numa confusão de nomes que revelou seu desconhecimento sobre a situação de tensão que há anos esperava um estopim para se tornar conflito.
Ampliação da terra indígena
Os nervos dos proprietários rurais e lideranças locais ficaram à flor da pele com a presença do Greenpeace por um motivo simples. Embora já bastante impactada pelo corte raso e destruição de áreas de preservação permanente, a região por onde passa o rio Preto, um dos formadores do Juruena, ainda guarda um dos últimos remanescentes de floresta fora de áreas protegidas no município de Juína. E é para lá que olham o setor madeireiro e os pecuaristas da cidade. Por isso, desde que se começou a cogitar a ampliação da Terra Indígena Enawenê Nawê, com 742 mil hectares, vizinha ao rio Preto, índios e integrantes da Opan têm sido intimidados.
Em maio deste ano o fazendeiro Aderval Bento, presidente da Associação dos Proprietários Rurais do rio Preto, concedeu uma entrevista a O Eco atestando que a região é ocupada hoje por 300 proprietários, todos com título das áreas. “Nós impactamos o mínimo possível, mas 18,8% da área já foram alterados”, disse. “Exercemos a função social de produzir, temos nosso direito de posse e não podemos admitir que os índios entrem ali. É uma afronta”.
Segundo Edison Rodrigues, que trabalha diretamente com o povo Enawenê Nawê pela Opan, a área do rio Preto é importante para os índios porque eles dependem da região para uma série de atividades, entre as quais a pesca, já que costumam não se alimentar com carne vermelha. “Não existe relação só com o rio. Há, por exemplo, morros na área que são consideradas moradas de espíritos. Além disso, nas cabeceiras do rio Preto eles coletam jenipapo como parte de um ritual”, explicou Rodrigues.
Há muito reivindicado pelos índios, na última sexta-feira, o edital para a criação de um grupo de trabalho foi lançado pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Dele é esperado que saia um laudo antropológico e sejam feitos os encaminhamentos necessários para a ampliação em cerca de 200 mil hectares da terra indígena, hoje ocupada por cerca de 500 índios. Era o que os proprietários não queriam, e desde semana passada, estavam prevenidos contra qualquer sinal de que essa ampliação pudesse sair.
Amado Oliveira Filho, representante da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso (Famato), reduziu o ocorrido em Juína a “discussão acalorada” e que se tratou de uma questão pontual. “O problema é a ausência do governo federal e da Funai, que é desaparelhada”, acusou. “Hoje o Mato Grosso é um estado moderno, com pessoas civilizadas”, disse.
A assessoria de imprensa da prefeitura de Juína informou que não houve expulsão e que a sociedade chamou os visitantes para uma reunião na câmara para deixar claro que ninguém concordava com o fato de o Greenpeace ser guiado na terra indígena pela Opan. “Haveria tendenciosidade”, uma vez que a organização é mal vista na cidade. Quanto às denúncias de ameaças, a assessoria garantiu que nada disso aconteceu. “Eles devem ter se impressionado com alguma coisa”, afirmou o assessor. O Greenpeace entregou na tarde desta quarta-feira ao procurador Mario Lucio Avelar, do Ministério Público Federal, as seis horas de gravações feitas na câmara dos vereadores em Juína, que registraram todas as ameaças ao grupo.
(Por Andreia Fanzeres, OEco, 22/08/2007)